sábado, 17 de abril de 2010

Saturday Night News


Que não me estranhem a ausência. Novos desafios profissionais obrigam-me a ter que adquirir um novo ritmo de vida e por agora menos tempo para andar por estes mundos. Mas vou tentar voltar aos poucos, tenho muitas histórias para contar e ainda a grande história para escrever e não me vou esquecer dos vossos cantos, mesmo que não deixe nota, saibam que vou passando por lá.

Para quem se distraiu apaixonei-me pelo orvalho por aqui: »».««

Uma grande nuvem de cinza espalhou-se pela Europa e fechou muitas portas de saída e outras tantas de entrada, como tudo na vida o desalento de tantos é a bênção de poucos. Gosto por demais deste Libanês, fresco, descontraído, despretensioso e alegre e que tem o condão de me pôr bem disposto e a abanar a cabeça e a bater o pé, que me perdoem os puristas, faz-me lembrar, pela pose e pela expressão que dá ao corpo o meu saudoso Freddy Mercury. Não podia ir ao concerto, a data era-me impossível, mas eis que os deuses nórdicos decidiram cuspir fogo e tapar os céus e acabando por lhe fechar a porta de saída que o traria ao redondel de Lisboa e eu que sou atento a sinais do destino, já tratei de arranjar forma de lá estar em Maio… a dançar em boa companhia.


MIKA - Blame It On The Girls

domingo, 11 de abril de 2010

Fabulando [3]


O Horácio na sua juventude tinha sido um cão insatisfeito com a vida pacata que se levava pela terriola onde até as moscas eram enfadonhas, mesmo quando se punham umas sobre as outras em pilhas de duas ou três ou até quatro a fazer coisas divertidas ainda eram chatas. Um dia o Horácio acordou decidido, arrebitou-se todo e disse às pulgas que se ia pôr a andar dali para fora, correr mundo e conhecer coisas novas, aprender línguas e quem sabe pelo caminho papar umas cadelinhas e fazer fortuna. Muitas das pulgas quiseram saltar fora e outras nem por isso porque a carne era fraca mas o sangue abundante e lá embarcaram na aventura de serem embarcadiças de um cão embarcadiço num navio da marinha mercante que transportava para lá uma coisas e para cá outras e fazia muitas escalas.

Rapidamente o Horácio se adaptou aquela vida errante de ser um cão que flutuava entre portos distantes portas abertas ao mar de lugares exóticos onde haviam cheiros e cores e costumes diferentes de tudo o que a imaginação alguma vez podia imaginar e nalguns fez amigos e noutros inimigos mas em todos arranjou paixões nem sempre correspondidas mas sempre desejadas e pelas quais lutava com todas as suas forças, porque era um cão fogoso e diziam até jeitoso no seu tom dourado de corpo esguio e cauda robusta e felpuda. Houveram assim muitas cadelas e outras bichas similares porque nunca apreciara coisas esquisitas mas sempre manteve uma regra de ouro de nunca mas mesmo nunca ter mais do que uma fêmea em cada porto.

Com o passar dos anos era inevitável que os filhos começassem a aparecer como surpresas no regresso a cada lugar e quando ouvia aquela frase gaguejada que começava quase sempre com um querido tenho uma coisa para te contar, lá punha o seu sorriso mais complacente e um brilho de orgulho no olhar que mirava os pimpolhos que lhe eram apresentados como seus e nunca mas mesmo nunca contestou a sua responsabilidade paternal, mesmo quando era por demais evidente que havia ali qualquer coisa estranha e as contas nem batiam certo. Se o queriam para pai, se achavam que ele era cão suficiente para ter aquele papel, ele só se poderia sentir orgulhoso e abraçar aquele que o esperava como exemplo como seu de sangue e sentimento.

A fortuna nunca apareceu de um pontapé numa pedra, mas o tempo e alguma poupança trouxe um pé de meia que lhe permitiu encarar o Outono da vida de uma forma mais serena e menos atribulada e um dia o Horácio acordou decidido e disse às pulgas que ia voltar para casa e elas perguntaram, mas a qual casa, uma vez que tantas tinha e o Horácio com o olhar mais sério do mundo e algo zangado lá lhes explicou que independentemente das andanças, casa só havia uma, lá bem longe onde as uvas produziam vinho que lhe recordavam a cara do pai e toda a comida tinha o cheiro da mãe e nesse mesmo dia se pôs a caminho e ao chegar comprou por bom preço a tasca do cavalo do Manel que se queria retirar para pastagens mais verdejantes e de vento mais sereno e rapidamente conquistou a clientela que já era cliente e outra que pela simpatia e boa pinga cliente se fez.

Agora o Horácio estava ali de tomatada inchada prestes a contar aos amigos que na véspera lhe tinha entrado pela porta um dos filhos longínquos de quem mais se orgulhava e que tinha trazido com ele uma história que lhe voltara a acordar a sede de aventura…


The Specials - Ghost Town

domingo, 4 de abril de 2010

Diário de um louco impoluto – Dia 22


Estou parado num sinal vermelho. A sociedade estabelece códigos simples para nos dar ordem como partes individuais que deviam funcionar num todo. Vermelho para parar, amarelo para atentar, verde para realizar, não há complexidades nas cores para que o cérebro não tenha dúvidas na mensagem, educação, formatação, condicionalismo reflexivo na mais pura e elementar essência. Como que para me contrariar os pensamentos observo um casal de cegos que atravessa a estrada à minha frente. De braço dado exploram o caminho com varas compridas de metal, tic tic tic tic e avançam. O homem é mais velho que a mulher, tanto podem ser um casal como pai e filha mas as varetas nunca se cruzam e é essa a dança que me fascina, tic tic tic tic, não consigo perceber a diferença de cada som porque só ouço tic tic tic tic, mas sinto que para eles há tics que são sons de cor vermelha e tics que são sons de cor amarela e tics que são sons de cor verde e o casal chega à segurança do passeio e procura a referência da parede e depois segue decidido para um café quase junto à esquina, encontram a porta com uma facilidade impressionante e deixo de os ouvir, tic tic tic tic.

Estou tão fascinado que me desligo do condicionalismo reflexivo que me diz para avançar porque o sinal ficou verde e sou empurrado de novo para a realidade por um coro de apitos e faces iradas de pessoas que não tem tempo a perder com um casal de cegos que não vê vermelhos, nem verdes, mas que sabem a diferença de cada tic tic e que até podem ser pai e filha mas que fazem dançar as varetas sem nunca as cruzar. Não consigo conceber poder ver sem os olhos e decido na minha visão romântica de que vejo aquele casal unidos pelo sangue e pelo defeito e pela qualidade na partilha da ausência de luz e que não cruzam as varetas para poder aumentar a amplitude dos sons da sua visão.

Não concebo imaginar sem uma imagem e não sei se sou afortunado ou limitado pela minha visão. Vi dois cegos que imaginei como um pai e uma filha cegos da sua cegueira e avançando de braço dado sem medo de superar os obstáculos que a vida ou o acaso ou o que foi que o destino ou o acidente lhes colocou no caminho porque é preciso avançar para poder chegar a algum lado. Não consigo imaginar uma imagem porque a vejo e não sei se nesta minha limitação não perdi espaço para a minha imaginação. Estou condicionado pelo preconceito de cores que não imagino porque as vejo e que me impõem reacções de avançar ou hesitar ou parar.

A minha cegueira não é física é uma cegueira de ignorância e não tenho com quem a partilhar de braço dado e sinto vontade de falar com aqueles cegos. Queria perceber como ouvem as cores e as cheiram e as sentem com a pele dos dedos. Queria poder apagar todas as cores e imaginá-las de forma diferente, sinto-me egoísta por isso, sinto-me egoísta pela atracção da liberdade da cegueira, sinto-me egoísta porque sinto que aqueles cegos provavelmente dariam tudo para poder ver o que eu vejo e não perceberiam porque quereria eu poder imaginar o que eles não conseguem ver. Fecho os olhos mas a escuridão não me liberta, é apenas escuridão sem nenhuma luz, a imagem do que me rodeia não muda no meu imaginário porque apenas fechei os olhos.

Queria hoje voltar a rebaptizar as cores, imaginar o amarelo do calor do Sol e o azul do som do mar e o verde do cheiro da relva acabada de cortar e o branco do frio da neve e o vermelho da paixão no sentir bater um coração deitado a meu lado na cama. Queria hoje inventar novas cores, a cor do suor, a cor de uma lágrima, a cor de um riso, a cor do amor e a cor do ódio. Queria hoje libertar a minha imaginação de todas as cores que me oprimem e libertar-me desta cegueira que me entra pelos olhos.

Wah - Story of the Blues