quarta-feira, 24 de agosto de 2011

(À Suivre) - 06

O Sandocam não era um rapaz muito esperto e todos percebíamos mas ninguém se ralava com isso. No dia em que chegou ao pé de nós, afogueado de face vermelha a dizer que ele é que queria ser o Sandocam porque era muito mais alto e muito mais valente e porque tinha muito mais ar de pirata e muito mais pinta que o Rubinudo, que viera primeiro com a ideia, ninguém teve coragem de o contrariar porque sabíamos que não tinha imaginação para muitos muito mais.

Ele morava no segundo andar por cima da mercearia que além de vender fruta em caixas espalhadas pelo chão também vendia gelados e nós comparávamos a arca enorme onde estes eram guardados a uma arca de tesouro misteriosa e o Sandocam jurava que no fundo no fundo por debaixo de tudo havia um cofre cheio de dinheiro e que já tinha visto o merceeiro entrar lá dentro e depois sair com um saco carregado de moedas e que o pai lhe tinha contado que tinha a certeza que era ali que ele tinha escondido o corpo da mulher que costumava atender ao balcão e que um dia simplesmente desaparecera. O Sandocam não era um rapaz muito esperto e todos percebíamos que gostava de contar patranhas mas ninguém se ralava com isso e quase sempre lhe anuíamos porque é para tal que servem os amigos e na verdade as coisas que inventava eram pouco elaboradas, inofensivas e boas de rir mais tarde.

Nunca nenhum de nós entrou na casa do Sandocam e nunca nenhum de nós viu a sua mãe sorrir. Ela era uma mulher muito magra e pálida que vestia sempre vestidos longos escorridos no corpo que variavam de cor entre tons de cinzento, castanho e preto e raramente saía à rua sozinha. Não me lembro de nenhum pormenor da sua cara ou se tinha nariz delicado e lábios finos e olhos pequenos ou grandes e castanhos ou azulados ou se usava óculos, era como se quisesse deixar para sempre uma marca indistinta em todos aqueles por quem passava, nada mais que uma sombra vestida e escondida num camuflado urbano socialmente aceitável e discreto. O pai era exactamente o oposto. Era um homem exuberante que ocupava espaço. Não que fosse gordo ou excessivamente encorpado mas sentia-se a sua presença assim que se aproximava, se o quisesse comparar a um bicho qualquer escolheria sem hesitar um bicho pavão. Ninguém sabia o que fazia na vida mas todos achávamos que devia ser vendedor de alguma coisa e os adultos que lhe sorriam acabrunhados pela frente conjecturavam-lhe hipóteses ilícitas pelas costas. O certo é que não ostentavam nenhum sinal extraordinário de riqueza e pareciam viver como todos nós por ali remediando um dia de cada vez.

O Sandocam não era um rapaz muito esperto e todos percebíamos que somava no comportamento do dia a dia o esforço de querer ser como o pai e a natureza de ser como a mãe. Era como uma folha caída num rio perdida entre as margens que por não saber nadar se deixava ir na corrente. Tinha um medo enorme em mostrar os seus medos e muito mais medo de falhar e só a dor física o fazia chorar. Transformava a frequência das derrotas numa frequente teimosia que só ele e o pai apelidavam de carácter e força de vontade e desdobrava-se e arranhava-se e esfolava-se sempre que sentia que este raramente o observava de longe. O Sandocam não era um rapaz muito feliz e todos percebíamos mas éramos apenas miúdos e ninguém ainda se ralava com isso.

(À Suivre)

Red Hot Chili Peppers - Californication

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

(À Suivre) – 05

Nós éramos seis ou sete e às vezes nove e o que mais queríamos era um dia viver uma grande aventura. Não reparávamos muito nisso mas estávamos a crescer mais um bocadinho todos os dias num tempo em que o crescimento era ainda medido pelas bainhas das calças que todas as Mães sabiam fazer e desfazer mais um bocadinho de vez em quando entre suspiros e sorrisos e linha a condizer. Nós estávamos a crescer e aproximávamos os nossos olhos mais um bocadinho todos os dias dos olhos das nossas Mães que misturavam no brilho orgulho e mágoa porque crescíamos num tempo onde faltava liberdade e sobrava guerra e receavam a chegada de um dia em que por mais um bocadinho nos sobrasse perna e lhes faltasse tecido.

Mas nós não queríamos saber nem das incertezas nem das guerras dos crescidos e queríamos é que chegasse o dia em que iríamos viver uma grande aventura porque este era ainda o tempo em que o Mundo era uma coisa enorme com muitos cantos onde tanto nos podíamos perder como nos podiam encontrar e as estórias que nos enchiam a imaginação e atiçavam o espírito eram contadas na televisão entre meandros de cinzento e muitas sombras e os livros não tinham capas que brilhavam com várias cores mas tinham textura e cheiravam a papel.

Nós éramos seis ou sete e às vezes nove rapazes com duas mãos cheias de anos e a cabeça cheia de sonhos e o espaço que ocupava a nossa rua não chegava para a nossa ambição e todos os dias algum de nós vinha com uma ideia de ir mas invariavelmente todos os dias algum de nós vinha com uma obrigação de ficar e na falta do concreto fazíamos planos. Penso que nunca antes e jamais depois um projecto foi tanto e tão bem planeado como o nosso, nós tínhamos mapas e diagramas e listas e códigos de palavras e de gestos e papéis e tarefas e ensaiávamos cenários e contingências e sabíamos ao milímetro tudo o que tinha de ser feito e quando ser feito para ter sucesso no que iríamos fazer só nos faltava o que fazer.

Já não sei quem nem quando mas um dia alguém achou que tínhamos que ter nomes mais apropriados do que próprios, nomes de heróis destemidos e valentes e fortes e distintos e assim nasceram o Sandocam e o Capitão K e o Sportie e o Mastermainde e o Rubinudo e o Xerife e o Piloto e o meu irmão continuou a ser o puto e mesmo insistindo e esbracejando que queria ser o Bonanza, ninguém lhe ligou. Eu confesso que perdi muito tempo a pensar no assunto. Eu não queria escolher por escolher e antes pelo menos uma vez na vida reconhecido por apelido do que nunca por feito.

Eu gostava mesmo de ser criança e não tinha pressa nenhuma de crescer e aqueles foram os tempos em que podíamos ser o que escolhíamos ser, sem vergonhas nem dúvidas nem que fosse por um bocadinho todos os dias, naquela rua, naquele espaço que nos era já pequeno mas que acreditávamos poder vir a ser a entrada secreta de um outro Mundo e nós os seis ou sete e às vezes nove permutávamos de identidade ao sair de casa e éramos os nossos próprios heróis indestrutíveis à prova de esfoladelas de joelhos e arranhões e cabeças partidas, coisas que inevitavelmente aconteciam e que podiam trazer lágrimas e alguma dor mas acima de tudo currículo.

(À Suivre)

DIVA - Mariana

terça-feira, 9 de agosto de 2011

(À Suivre) – 04

Na verdade durante algum tempo senti-me mesmo enganado, defraudado, traído e embrulhado por aquela conversa de que ia ter um maninho, primeiro porque tardava a chegar e eu não conseguia entender porque tinha de vir de tão longe de outras terras nem porque é que as minhas birras de lágrima farta, berro de ficar rouco e pontapé no chão para que chegasse logo à tarde ou quando muito depois do jantar não resultavam em nada e segundo porque quando finalmente chegou não servia para brincar. Não tenho qualquer memória da chegada do meu irmão lá a casa. Sempre fui muito distraído e trancado no meu mundo e provavelmente um dia levantei os olhos do que me entretinha e reparei que havia algo diferente, algo que me tirava do centro das atenções, algo que fazia barulho e que não cheirava assim tão bem de perto e que não eu podia apertar e de preferência nem mexer e que era meio avermelhado com pouco pêlo e que por muito que eu insistisse não se podia devolver na loja nem trocar por outro bicho.

Tenho ideia que o tipo comia que se desunhava e tenho ideia que quando não estava a dormir estava a mamar e tenho ideia que não lhe podia dar batatas fritas e tenho ideia que apanhei com força nas mãos e no rabo por ter voltado a tentar quando toda a gente estava distraída mas eu era teimoso e convencido que se lhe ensinasse rapidamente a gostar do mesmo que eu gostava tudo iria melhorar na hora da refeição e que a sopa de hortaliça e as batatas cozidas com pescada, cenoura e brócolos e o pão sem manteiga nem doce de tomate seriam banidos para todo o sempre para outras casas de meninos sem irmãos. O que é certo é que mesmo sem a minha ajuda ele lá foi crescendo e um dia começou a gatinhar e noutro dia a arrastar as pernas entre a mesa e o sofá e pouco depois a andar de uma forma que me fazia rir e rir lançando o corpo para a frente e balançando as pernas para não as deixar fugir e não tardava nada já corria atrás de mim a destruir-me os brinquedos que não conseguia engolir.

Não era de todo verdade que o meu irmão fosse realmente parecido comigo como toda a gente dizia, a mim ninguém me convencia disso. Eu tinha aquela imagem de miúdo esperto e vivaço que num instante parecia estar a perceber as conversas dos adultos e no seguinte já tinha esquecido tudo e dado com a cabeça na porta porque não tinha reparado que esta estava fechada e chato de levar às lágrimas na hora de comer e de deitar e que dava voltas e voltas na cama antes de adormecer porque via em cada sombra do quarto uma colecção de coisas e outras coisas e ele era redondinho fofinho e pestanudo.

A malta da rua tinha quase toda a mesma idade mais dia menos dia, mais mês menos mês e todos eram ainda filhos únicos ou tinham irmãos mais velhos que não os queriam aturar e quando apareci pela primeira vez com o meu irmão a tiracolo balbuciando desculpas que ou o trazia comigo ou não podia vir brincar eles não foram de modas e adoptaram o puto como mascote do grupo. Para contrariar o ar convencido que o meu irmão passou a assumir desde esse dia nunca me abstive de lhe dizer que tudo teria sido diferente se algum de nós tivesse um cachorro.

(À Suivre)

Rickie Lee Jones - Chuck E's In Love