sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A graça da Garça

Hoje circula-se por aqui »».««


Tears for Fears - Mad World

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Diário de um louco impoluto – Dia 24


Sinto que há demasiado tempo não me transcrevo neste diário. Sinto falta da catarse de deixar as palavras reflectirem o meu sentir, deixar os verbos desmascararem a minha raiva, deixar as virgulas assinalarem as minhas dúvidas, deixar-me escorrer por entre o que escrevo.

Sinto que há demasiado tempo ando a adiar o amanhã e a continuar a lamentar o ontem enquanto hoje ainda me perco e se calhar por isso ou por outra razão qualquer estou a caminhar por entre árvores espaçadas e terra batida. O dia está solarengo e a pedir uma sombra e procuro-a sobre um banco de madeira maltratada pelos anos e por muitos que o usaram para muitas coisas. Os veios estão abertos como gretas e cruzados aqui e ali por riscos incertos de pontas arrastadas de navalhas e bicos de pregos, reconheço esboços de corações atravessados por setas e promessas de amor eterno. Gosto do árido das tábuas e verifico que a ferrugem cristalizou nas ferragens e não me suja as mãos.

Sinto que há demasiado tempo não me preocupo com o que sinto ou que sinto que devia de me preocupar com o que não sinto e acabo por encolher os ombros e deixar acabar mais um dia com a certeza que amanhã virá outro e que há sempre tempo para tudo desde que o queiramos verdadeiramente mas eu sei que o tempo tem os dias contados e bem contados. Admiro o banco onde estou sentado e a capacidade que teve de envelhecer desempenhando o seu papel. Admiro ou talvez inveje o que já testemunhou e a sorte de ser um objecto inerte livre de sentir colocado num local onde o vento sopra e a chuva cai e o Sol brilha ou se esconde atrás das nuvens e onde se cheira a relva e as folhas caem e de ser útil sem questionar a razão de o ser ou querer ainda ser mais que apenas útil.

Sinto que há demasiado tempo ainda para me sentar neste banco mas que é demasiadamente pouco para o que quero que me falte e entre o que me falta e o tempo que me resta há uma disputa e eu estou sentado neste banco a assistir sem querer tomar partido. Vejo lá em baixo uma velha dar de comer aos pombos. Penso que já uma vez escrevi que não gosto de pombos. Não reconheço utilidade aos pombos e acho que a única coisa que os pombos fazem é comer e cagar e entre as duas foder e reproduzir-se como ratos. Costumo dizer que os pombos são como ratos com asas e se acreditasse em Deus nas minhas preces perguntaria: Diz-me Deus porque criaste os pombos? Acho que se acreditasse em Deus e lhe fizesse esta pergunta iria ter uma resposta, posso ter dúvidas na existência de Deus mas não tenho nenhuma dúvida que se perguntasse para que é que servem a merda dos pombos ele me diria e de forma a que eu iria perceber e entender. Se calhar aquela velha que está a dar de comer aos pombos, acredita em Deus e um dia perguntou-lhe e agora que já sabe para que é que servem a merda dos pombos, passa todos os dias por aqui com pão que esfarela para os alimentar para que possam comer e cagar e entre as duas foder e ainda cumprir o desígnio de Deus.

Sinto que há demasiado tempo que estou aqui sentado neste banco a ver uma velha a cumprir os desígnios de Deus e pergunto-me se quando ela se dirigiu a Deus e lhe perguntou para que é que serviam os pombos se não estaria aqui sentada neste mesmo banco e se não estou a perder a oportunidade de também eu encontrar a minha resposta. Parece-me fácil acreditar, mais fácil que continuar a duvidar que não há razões para a existência dos pombos e que os problemas existencialistas dos homens se podem resolver percebendo que há sempre uma razão para além de comer, cagar e entretanto foder, basta acreditar.


Jethro Tull - Too Old To Rocknroll Too Young To Die