domingo, 29 de maio de 2011

O catador de histórias (Prólogo)

“Sonhei que encontraria o caminho e o meu enredo algures num sonho”

Tenho as ideias amolecidas por uma mistura de preguiça e calor. A luz do dia é de um amarelo pálido e adivinho que vem aí trovoada e talvez chuva daquela que cai de repente num repente e que molha tudo sem o lavar. Não gosto desta luz nem deste calor nem do cheiro desta primavera que me parece uma estação doente ou que estou num outro lugar onde imagino haver outra luz.

Estou perdido entre um querer ir e um não saber como lá chegar e sinto a falta de vida para dar vida a outras vidas mas não posso parar se ainda não comecei a andar. Percorro as teclas com os dedos, acaricio uma a uma, tão poucas letras formam tantas palavras e tão poucas me sobram e tantas me faltam e por muito que busque e rebusque estou empastelado porque as ideias e a trovoada não chegam e o calor sufoca-me. Apetece-me despir-me de tudo e procurar uma janela de onde se possa ver o mundo e na falta desta contento-me com uma que dá para a rua, carros parados de ambos os lados, fechados da gente que os abandonou por agora formam corredores estreitos entre o asfalto e a parede forrados de pedras pequenas regulares.

Quando era pequeno procurava encontrar nas pedras da calçada padrões secretos que mais ninguém conseguia ver, códigos, cifras, mapas com indicações precisas para chegar à aventura e com habilidade à fortuna, depois com a idade deixei de olhar para o chão, acho que faz parte de crescer deixar de olhar para o chão. Acendo um cigarro. De baixo do fundo da rua vem um casal ou talvez apenas um homem e uma mulher que caminham juntos, trazem dois cães pela trela, um grande e um pequeno. De cima do topo da rua vem um rapaz que ainda não é homem mas que já deixou de ser miúdo, traz uma guitarra ou uma viola suspensa ao pescoço por uma correia. O casal passa a estrada com os cães e saem da minha vista encobertos pelas varandas, o rapaz continua a descer a rua e de vez em quando dá um acorde na guitarra ou na viola , caminha apenas com os seus acordes.

Estou de novo sozinho na minha janela de onde posso ver uma rua do mundo e tento recordar-me se o cão grande era peludo e qual era a cor dos cabelos da mulher e se o rapaz vestia calças de ganga e decido roubar a vida àquelas pessoas e chamo Maria à mulher e Tiago ao rapaz e popicorni ao cão pequeno e que os acordes são de uma música que ouvi ontem na rádio e que a letra tem significado para o que vai ainda fazer esta noite. Na falta do que me falta e da memória dos meus sonhos vou catar histórias por aqui e por ali e fazer-me ao caminho.


Keane - Somewhere Only We Know