quarta-feira, 8 de junho de 2011

O catador de histórias - (01) Maria


Abro a porta e deixo os cães entrar, abaixo-me, solto-lhes as correias e tenho tempo de fazer uma festa no velho que me olha como sempre como se percebesse como estou e afasta-se para o seu canto atrás do miúdo que salta e esganiça-se e cheira tudo a inspeccionar que nada falta e nada mudou de sitio.
-Coitado já lhe custa subir as escadas…
Pois custa… Têm quase a mesma idade que nós o velho e sabe que está velho e está cansado e sente o meu cansaço e a mágoa da sua velhice na nossa velhice. 15 anos? Não quase 15 anos, foi no ano em que casámos, pouco depois do aniversário do António, estávamos todos na esplanada , a Ana, a Carla, o Zé e o Carlos ainda era vivo e havia ainda outra pessoa que não me consigo lembrar, nunca me consigo lembrar mas estava lá outra pessoa e houve alguém que começou a falar de filhos e o António riu-se e disse que não tínhamos tempo para isso, havia que viver e crescer e muito para fazer e outro que perguntou o que poderia ele então fazer se eu quisesse mesmo ter filhos e o António gargalhou e respondeu que me comprava um cão e comprou-me um cão.
O velho já dorme, respira pesado, vou chorar quando morrer, sei que vou chorar e sei que o António vai dizer-me para ter paciência e que a vida é mesmo assim e que um dia tudo acaba e que temos o Pop e que foi por isso que fomos buscar o Pop ao canil porque já sabíamos que um dia o dia chegaria em que o velho se iria e sei que irá buscar uma manta velha e embrulhá-lo e irá levá-lo para um sitio que nunca me dirá porque não adianta eu saber e com isso sofrer. Sei que não vai verter uma lágrima porque é forte, forte por nós dois e nem vai perceber que as minhas lágrimas são a minha força.
No principio brincávamos porque ainda não te tínhamos escolhido um nome e fazíamos piadas com os amigos que nos perguntavam como te chamavas e nós explicávamos que bastava olhar para ti e tu percebias e vinhas e que não precisavas de nome porque eras um cão sem nome porque eras mais do que um simples cão não cabias num só nome e depois eu quis dar-te um nome mas não consegui encontrar nenhum que lhe agradasse e o tempo foi passando e um dia sem darmos por isso eras o velho.
-Se não te importas vou para a cama que amanhã tenho que sair mais cedo, ainda não sei se tenho que ir ao Norte.
-Vais ao Porto?
-Não, se for, vou a Pombal, estamos a começar um trabalho e sabes como é aquela malta, se não percebem que o patrão anda por lá encostam-se.
-Vai tu andando que eu quero só acabar de ver isto.
O raio do miúdo finalmente caiu de sono, está deitado na ponta do sofá de onde te levantaste, deve gostar do teu calor, eu também me lembro de gostar do teu calor, antigamente quando o velho ainda não tinha nome tinhas calor. Levanto-me e apalpo o lugar sem tocar no cão que mesmo assim me pressente e levanta a cabeça e percebe o meu schiu e volta a dormir e apenas o sinto morno. Já dormes ou pretendes que pense que já dormes e recordo-me do tempo em que o velho ainda não tinha nome em que fazíamos amor todas as noites, agora já dormes ou pretendes que pense que já dormes para que não te peça para fazermos amor mas na realidade hoje nem me importava que não fizéssemos amor apenas que fodessemos.

The Cranberries - Analyse

1 comentário:

Phoebe disse...

Li e lembrei-me de pensar que a nostalgia tem temperatura. Rondará os 36 graus envoltos em peso numa manta.