Na realidade um ano não é mais que o tempo que esta bola onde vivemos feita de terra e de ar e de água e de fogo e de gente leva a dar a volta a uma estrela, é uma coisa simples, apenas um ciclo.
Monty Python - Always Look On The Bright Side Of Life
Na realidade um ano não é mais que o tempo que esta bola onde vivemos feita de terra e de ar e de água e de fogo e de gente leva a dar a volta a uma estrela, é uma coisa simples, apenas um ciclo.
Monty Python - Always Look On The Bright Side Of Life
Sinto a falta de rabiscar qualquer coisa numa folha de papel, algumas palavras que me levem por aí, mesmo sem ideia de caminho nem objectivo nem tempo de chegar.
Há dias atarefávamo-nos para sair, estávamos atrasados e íamos finalmente para longe quando o telefone tocou. Não foi um daqueles momentos em que estamos quase prontos para saltar e algo nos interrompe e sentimos que o instante se perde e que tudo o que poderia ser se limita a ser de uma outra forma, banal, vazia, sem razão para memória, não o telefone simplesmente tocou e eu continuei atarefado para sair e tu atendeste.
Tenho a mania de sempre que estou com alguém que conversa ao telefone contar os sins e os nãos e ver quem ganha, de algum modo acho que ponho as minhas esperanças no futuro da humanidade neste jogo simples entre palavras de afirmação ou cedência e de negação ou resistência e tantas vezes lamento que aquela pessoa que acabou de desligar e volta de novo a sua atenção para mim não perceba que o meu sorriso e o meu encolher de ombros escondem decepção e que esperaria dela uma outra coisa, outra forma de estar ou outra atitude perante algo que embora não saiba o quê, imagino poder ter sido diferente.
Naquele dia, há dias, o telefone tocou e tu atendeste e não houve nem sins nem nãos, apenas um silêncio que se foi prolongando como um elástico que se estica e se estica e se estica até ao momento em que sabemos que se o continuarmos a esticar nos vai saltar ou partir em chicote nas nossas mãos e antecipamos essa dor e eu parei de estar atarefado para sair e olhei para ti e vi os teus olhos se encherem e pressenti o soluço engasgado soltar-se no ar.
Depois deixaste jorrar a tua raiva, deitaste para fora os sentimentos de injustiça e de impotência e de como somos insignificantes perante a crueza do inevitável e eu fiquei por ali sem mais importância nas tarefas e ausente em palavras de consolo e sem saber o que fazer com as mãos que se tornaram incómodos estendidos nas pontas dos braços e esperei que voltasses a ser rocha na tempestade e só depois te abracei, de novo ancorado na tua força.
Acabámos por vir finalmente para longe e estou algures por aqui com sede de palavras e de ficar ainda mais um pouco mas esta vida que se esgota e nos cobra a saudade de tantos em soluços e lágrimas também nos puxa e agora é hora de nos atarefarmos para sair e voltarmos para perto antes que fiquemos atrasados ou que o telefone toque.
Leonard Cohen - Take This Waltz
O Sandocam não era um rapaz muito esperto e todos percebíamos mas ninguém se ralava com isso. No dia em que chegou ao pé de nós, afogueado de face vermelha a dizer que ele é que queria ser o Sandocam porque era muito mais alto e muito mais valente e porque tinha muito mais ar de pirata e muito mais pinta que o Rubinudo, que viera primeiro com a ideia, ninguém teve coragem de o contrariar porque sabíamos que não tinha imaginação para muitos muito mais.
Ele morava no segundo andar por cima da mercearia que além de vender fruta em caixas espalhadas pelo chão também vendia gelados e nós comparávamos a arca enorme onde estes eram guardados a uma arca de tesouro misteriosa e o Sandocam jurava que no fundo no fundo por debaixo de tudo havia um cofre cheio de dinheiro e que já tinha visto o merceeiro entrar lá dentro e depois sair com um saco carregado de moedas e que o pai lhe tinha contado que tinha a certeza que era ali que ele tinha escondido o corpo da mulher que costumava atender ao balcão e que um dia simplesmente desaparecera. O Sandocam não era um rapaz muito esperto e todos percebíamos que gostava de contar patranhas mas ninguém se ralava com isso e quase sempre lhe anuíamos porque é para tal que servem os amigos e na verdade as coisas que inventava eram pouco elaboradas, inofensivas e boas de rir mais tarde.
Nunca nenhum de nós entrou na casa do Sandocam e nunca nenhum de nós viu a sua mãe sorrir. Ela era uma mulher muito magra e pálida que vestia sempre vestidos longos escorridos no corpo que variavam de cor entre tons de cinzento, castanho e preto e raramente saía à rua sozinha. Não me lembro de nenhum pormenor da sua cara ou se tinha nariz delicado e lábios finos e olhos pequenos ou grandes e castanhos ou azulados ou se usava óculos, era como se quisesse deixar para sempre uma marca indistinta em todos aqueles por quem passava, nada mais que uma sombra vestida e escondida num camuflado urbano socialmente aceitável e discreto. O pai era exactamente o oposto. Era um homem exuberante que ocupava espaço. Não que fosse gordo ou excessivamente encorpado mas sentia-se a sua presença assim que se aproximava, se o quisesse comparar a um bicho qualquer escolheria sem hesitar um bicho pavão. Ninguém sabia o que fazia na vida mas todos achávamos que devia ser vendedor de alguma coisa e os adultos que lhe sorriam acabrunhados pela frente conjecturavam-lhe hipóteses ilícitas pelas costas. O certo é que não ostentavam nenhum sinal extraordinário de riqueza e pareciam viver como todos nós por ali remediando um dia de cada vez.
O Sandocam não era um rapaz muito esperto e todos percebíamos que somava no comportamento do dia a dia o esforço de querer ser como o pai e a natureza de ser como a mãe. Era como uma folha caída num rio perdida entre as margens que por não saber nadar se deixava ir na corrente. Tinha um medo enorme em mostrar os seus medos e muito mais medo de falhar e só a dor física o fazia chorar. Transformava a frequência das derrotas numa frequente teimosia que só ele e o pai apelidavam de carácter e força de vontade e desdobrava-se e arranhava-se e esfolava-se sempre que sentia que este raramente o observava de longe. O Sandocam não era um rapaz muito feliz e todos percebíamos mas éramos apenas miúdos e ninguém ainda se ralava com isso.
Red Hot Chili Peppers - Californication
Mas nós não queríamos saber nem das incertezas nem das guerras dos crescidos e queríamos é que chegasse o dia em que iríamos viver uma grande aventura porque este era ainda o tempo em que o Mundo era uma coisa enorme com muitos cantos onde tanto nos podíamos perder como nos podiam encontrar e as estórias que nos enchiam a imaginação e atiçavam o espírito eram contadas na televisão entre meandros de cinzento e muitas sombras e os livros não tinham capas que brilhavam com várias cores mas tinham textura e cheiravam a papel.
Nós éramos seis ou sete e às vezes nove rapazes com duas mãos cheias de anos e a cabeça cheia de sonhos e o espaço que ocupava a nossa rua não chegava para a nossa ambição e todos os dias algum de nós vinha com uma ideia de ir mas invariavelmente todos os dias algum de nós vinha com uma obrigação de ficar e na falta do concreto fazíamos planos. Penso que nunca antes e jamais depois um projecto foi tanto e tão bem planeado como o nosso, nós tínhamos mapas e diagramas e listas e códigos de palavras e de gestos e papéis e tarefas e ensaiávamos cenários e contingências e sabíamos ao milímetro tudo o que tinha de ser feito e quando ser feito para ter sucesso no que iríamos fazer só nos faltava o que fazer.
Já não sei quem nem quando mas um dia alguém achou que tínhamos que ter nomes mais apropriados do que próprios, nomes de heróis destemidos e valentes e fortes e distintos e assim nasceram o Sandocam e o Capitão K e o Sportie e o Mastermainde e o Rubinudo e o Xerife e o Piloto e o meu irmão continuou a ser o puto e mesmo insistindo e esbracejando que queria ser o Bonanza, ninguém lhe ligou. Eu confesso que perdi muito tempo a pensar no assunto. Eu não queria escolher por escolher e antes pelo menos uma vez na vida reconhecido por apelido do que nunca por feito.
Eu gostava mesmo de ser criança e não tinha pressa nenhuma de crescer e aqueles foram os tempos em que podíamos ser o que escolhíamos ser, sem vergonhas nem dúvidas nem que fosse por um bocadinho todos os dias, naquela rua, naquele espaço que nos era já pequeno mas que acreditávamos poder vir a ser a entrada secreta de um outro Mundo e nós os seis ou sete e às vezes nove permutávamos de identidade ao sair de casa e éramos os nossos próprios heróis indestrutíveis à prova de esfoladelas de joelhos e arranhões e cabeças partidas, coisas que inevitavelmente aconteciam e que podiam trazer lágrimas e alguma dor mas acima de tudo currículo.
(À Suivre)
DIVA - Mariana
Tenho ideia que o tipo comia que se desunhava e tenho ideia que quando não estava a dormir estava a mamar e tenho ideia que não lhe podia dar batatas fritas e tenho ideia que apanhei com força nas mãos e no rabo por ter voltado a tentar quando toda a gente estava distraída mas eu era teimoso e convencido que se lhe ensinasse rapidamente a gostar do mesmo que eu gostava tudo iria melhorar na hora da refeição e que a sopa de hortaliça e as batatas cozidas com pescada, cenoura e brócolos e o pão sem manteiga nem doce de tomate seriam banidos para todo o sempre para outras casas de meninos sem irmãos. O que é certo é que mesmo sem a minha ajuda ele lá foi crescendo e um dia começou a gatinhar e noutro dia a arrastar as pernas entre a mesa e o sofá e pouco depois a andar de uma forma que me fazia rir e rir lançando o corpo para a frente e balançando as pernas para não as deixar fugir e não tardava nada já corria atrás de mim a destruir-me os brinquedos que não conseguia engolir.
Não era de todo verdade que o meu irmão fosse realmente parecido comigo como toda a gente dizia, a mim ninguém me convencia disso. Eu tinha aquela imagem de miúdo esperto e vivaço que num instante parecia estar a perceber as conversas dos adultos e no seguinte já tinha esquecido tudo e dado com a cabeça na porta porque não tinha reparado que esta estava fechada e chato de levar às lágrimas na hora de comer e de deitar e que dava voltas e voltas na cama antes de adormecer porque via em cada sombra do quarto uma colecção de coisas e outras coisas e ele era redondinho fofinho e pestanudo.
A malta da rua tinha quase toda a mesma idade mais dia menos dia, mais mês menos mês e todos eram ainda filhos únicos ou tinham irmãos mais velhos que não os queriam aturar e quando apareci pela primeira vez com o meu irmão a tiracolo balbuciando desculpas que ou o trazia comigo ou não podia vir brincar eles não foram de modas e adoptaram o puto como mascote do grupo. Para contrariar o ar convencido que o meu irmão passou a assumir desde esse dia nunca me abstive de lhe dizer que tudo teria sido diferente se algum de nós tivesse um cachorro.
(À Suivre)
Rickie Lee Jones - Chuck E's In Love
A vantagem de ser criança é de podermos contar as coisas mais bizarras aos adultos, aqueles que nos amam ou nos estimam ou nos têm como seus que estes sempre vão anuir a sua concordância condescendente muitas vezes sem sequer nos ouvir e se insistirmos com um: “não me estás a ligar nenhuma” ou um: “Mãe! É mesmo verdade não estou a brincar” lá nos arriscamos a uma festa no cabelo e a uma explicação mais cientifica que tratará de desmistificar o encanto da coisa misteriosa e torná-la meramente banal, segura e sem mais razões para temores. Neste caso terá sido o eco e algum vento caprichoso que trouxera a voz canora de uma casa mais distante e afinal as pessoas andam na rua tão ocupadas com os seus problemas e tão preocupadas com os problemas dos outros que já não ouvem nem os seus próprios passos quanto mais a poesia de uma música cantada algures.
Outra vantagem de ser criança é que temos sempre mais que fazer do que ficar muito tempo a matutar no mesmo e depressa troquei a minha coisa estranha por outra coisa qualquer, talvez um filme antigo de aventuras com heróis de bigode fino ou o mergulho num novo livro do Júlio Verne ou a invenção de mais um jogo que metesse caricas e buracos e o aproveitamento engenhoso de detritos para construir obstáculos e o assunto ficou esquecido até um dia porque há sempre um dia em que os assuntos esquecidos regressam mas esse dia ainda ia demorar.
Agora que penso melhor no assunto, eu ainda não deveria ter mais do que duas mãos cheias de anos ou quanto muito uma dúzia mal medida, porque naquele dia ainda andava na rua sem o meu irmão colado às canelas a chatear-me a molécula ou a imitar-me em tudo o que fazia e o meu irmão como todos os irmãos mais novos do mundo sabia bem aproveitar os caminhos de conquista que tanto me tinham custado em choro e pieguice e teimosia e castigos e ganhava por direito antecipado de irmandade os direitos que por direito eu só tinha tido já em idade avançada o que me fazia sentir que tinha desperdiçado grande parte da minha vida a lutar pela vida enquanto ele era um privilegiado matreiro a quem tudo lhe caia no colo de mão beijada ou que tinha nascido já de rabo virado para a lua em noite de lua cheia. Na verdade sem nunca o admitir amei o meu irmão desde o dia em que soube que ele estava a crescer dentro da barriga da minha Mãe.
Na prática, o meu irmão assim que começou a juntar letras e a trazer trabalhos da escola para fazer encostou a minha Mãe à parede e se eu podia ir brincar para a rua depois dos deveres porque é que ele tinha que ficar em casa? Porquê? Mas diz lá porquê? E porque sim e porque mandas não é justo! E não gostas de mim! E gostas mais do meu irmão! E se ele pode porque é que eu não posso! E eu já sou crescido! E eu porto-me bem! E eu prometo que faço tudo o que o meu irmão mandar! E eu não saio do passeio! E não sei se por cansaço ou porque já se tinha esgotado em argumentos anteriormente comigo, a minha Mãe cedia e lá vinha ele com um palmo abaixo de mim a calcorrear escada abaixo e eu aparentemente danado que nem um peru em vésperas de consoada mas na verdade feliz e contente por ter ali um seguidor devoto pronto a papaguear todos os palavrões que lhe ensinava e a admirar com brilho no olho qualquer disparate que fazia ou trambolhão que dava.
Não me lembro se contei ao meu irmão da minha coisa estranha, provavelmente devo ter contado com o cuidado de somar assombro e assombração à estória e ele deve ter escutado de boca aberta e pestana arregalada e passou a noite agitado a balbuciar temores no sono e eu de sorriso sacana nos lábios.
(À Suivre)
Queen - 'Somebody To Love'
Já andava há que tempos com vontade de falar no Nobre e não calhou e agora se calhar é tarde porque parece-me que tão cedo não se vai voltar a ouvir falar dele e não será por mim que a coisa se estraga. Se não tivesse perdido a oportunidade de falar do homem sempre diria que fazem falta a Portugal homens ambiciosos que não olham a esforços para alcançarem lugares e que quando não conseguem ir pela esquerda vão pela direita e se não conseguem chegar ao primeiro lugar do pódio tentam o segundo porque não há nada mais nobre do que a nobreza de lutar pelo que se acredita. Se muitos acusaram Nobre de falta de coerência e sentido de dever para com os tantos que nele confiaram poder fazer diferença, seria de todo injusto não reconhecerem agora que Nobre se chegou à frente e fez questão de ser o primeiro Português a ser enganado por este governo.
Fiquei muito sensibilizado com a atitude do nosso novo primeiro que renunciou aos amendoins torrados com mel da classe executiva da TAP para se contentar com umas bolachinhas de água e sal da classe económica o que permite à nossa transportadora aérea poupar reguinhos de dinheiro e demonstra que conhece bem onde atacar o despesismo deste país e que se sosseguem os regrados e se acautelem os esbanjadores porque o tempo das vacas que se engordavam a pão de Ló e destilados escoceses acabou e não tarda nada o papel higiénico do palácio de São Bento passará apenas a ter folha tripla extra suave e a ser branquinho sem bonecos.
Parece que correu bem a estreia ontem da nova atracção do Funcenter do Centro Cultural Colombo onde quem passa pode agora ser surpreendido por tiroteio e balas perdidas e rixas familiares na melhor tradição étnica. Eu que já me enjoava passear por lá a ver montras e gajas agora mal posso esperar para sentir a adrenalina de andar ali atento de cabeça no ar de um lado para o outro e preparado para mergulhar para trás das floreiras ao primeiro estalido. Empreendedores que são os nossos comerciantes, não irá demorar que se possa alugar à entrada do recinto, coletes daqueles com muitas correias à prova de bala que tanto impressionam as miúdas e eu que gosto tanto de dar ideias lanço o repto para a criação de matinés de paintball com cursos acelerados de guerrilha urbana promovidos pela Bershka que assim como assim já parece ter nome de célula terrorista.
Fico triste com a tomada de posição da Guarda Nacional Republicana em proibir o passeio de ciclistas nus pela cidade de Lisboa mesmo depois da organização ter garantido que todas as bicicletas teriam selins…
Queen – Bicycle Race
“Sonhei que encontraria o caminho e o meu enredo algures num sonho”
Estou perdido entre um querer ir e um não saber como lá chegar e sinto a falta de vida para dar vida a outras vidas mas não posso parar se ainda não comecei a andar. Percorro as teclas com os dedos, acaricio uma a uma, tão poucas letras formam tantas palavras e tão poucas me sobram e tantas me faltam e por muito que busque e rebusque estou empastelado porque as ideias e a trovoada não chegam e o calor sufoca-me. Apetece-me despir-me de tudo e procurar uma janela de onde se possa ver o mundo e na falta desta contento-me com uma que dá para a rua, carros parados de ambos os lados, fechados da gente que os abandonou por agora formam corredores estreitos entre o asfalto e a parede forrados de pedras pequenas regulares.
Quando era pequeno procurava encontrar nas pedras da calçada padrões secretos que mais ninguém conseguia ver, códigos, cifras, mapas com indicações precisas para chegar à aventura e com habilidade à fortuna, depois com a idade deixei de olhar para o chão, acho que faz parte de crescer deixar de olhar para o chão. Acendo um cigarro. De baixo do fundo da rua vem um casal ou talvez apenas um homem e uma mulher que caminham juntos, trazem dois cães pela trela, um grande e um pequeno. De cima do topo da rua vem um rapaz que ainda não é homem mas que já deixou de ser miúdo, traz uma guitarra ou uma viola suspensa ao pescoço por uma correia. O casal passa a estrada com os cães e saem da minha vista encobertos pelas varandas, o rapaz continua a descer a rua e de vez em quando dá um acorde na guitarra ou na viola , caminha apenas com os seus acordes.
Estou de novo sozinho na minha janela de onde posso ver uma rua do mundo e tento recordar-me se o cão grande era peludo e qual era a cor dos cabelos da mulher e se o rapaz vestia calças de ganga e decido roubar a vida àquelas pessoas e chamo Maria à mulher e Tiago ao rapaz e popicorni ao cão pequeno e que os acordes são de uma música que ouvi ontem na rádio e que a letra tem significado para o que vai ainda fazer esta noite. Na falta do que me falta e da memória dos meus sonhos vou catar histórias por aqui e por ali e fazer-me ao caminho.
Keane - Somewhere Only We Know
Eu até percebo que quando alguém se está a afogar em merda tenha dúvidas em gritar por socorro.
Segundo o que parece o tal do FMI já cá veio passar férias um par de vezes mas eu não me lembro da cara do senhor mas parece que não é assim muito simpático e não alinha em festarolas nem jantaradas nem partidas de golfe nem idas à praia nem em gastar dinheiro em lembranças e quinquilharia e eu pergunto então o que é que cá vem fazer porque o que a gente precisa é de malta que incentive a nossa industria e o nosso comércio e o nosso turismo e pelintras pés descalços carrancudos já cá temos muitos, obrigado.
Por muito que tente não me consigo lembrar mesmo da cara do senhor e se da primeira vez eu ainda era pequenito e queria era perceber o que era isso das miúdas, da segunda até já contribuía para a riqueza nacional mas queria era perceber disso das miúdas e não liguei muito, provavelmente porque o dinheiro já me faltava tanto para as miúdas e a sua percepção e mais centavo menos centavo não se notava grande coisa.
Como não me lembro da cara do senhor imagino-o como um daqueles tipos baixinhos lingrinhas sem idade definida que cheiram a naftalina e que se não fosse pelo cheiro passariam despercebidos em qualquer lugar vestindo um fato preto ou castanho liso ou azul de riscas fininhas, meio coçado nas mangas e nos bolsos e camisa branca amarelada com o colarinho gasto e apertado num pescoço de frango do campo e gravata escura com nó impecável e sem chapéu a cobrir os cabelos pretos escorridos quase quase iguais aos do Adolfo, aquele do bigodinho.
Não será fruto do acaso que no limiar da minha imaginação, por não me lembrar da cara do senhor, visualizo o FMI como um agiota daqueles que sabemos que vivem da miséria alheia e dos pobres de espírito que não se sabem governar e gastam o que nunca virão a ter, sempre escudados por uns gorilas grandalhões mal cheirosos e sem princípios que assentam a base do seu poder na certeza que o preço de não lhes pagarmos a tempo e horas nos pode custar uma rótula partida ou uma orelha cortada e que nos conseguem obrigar a racionar no bolor do pão que comemos e considerar supérfluo tudo o que nos possa distinguir dos bichos.
Mas o que é certo é que a culpa nunca é do prestamista, ele está lá para nos desenrascar nas horas de aflição, ninguém nos obriga a procurá-lo, ninguém nos mandou não ter juízo antes e durante para não ter que sofrer depois e só há consequência do acto porque houve inconsequência no agir e na realidade a malta não aprende e eu não me lembro da cara do senhor mas sei que ostenta um sorrisinho discreto e amarelado no canto do lábio ao perceber que vamos todos de férias na Páscoa e que por estranho que possa parecer a campanha publicitária para promover empréstimos para ir ver o Rock-in-Rio ao Rio foi um sucesso sem precedentes…
António Variações - O Corpo é Que Paga
Ainda não percebi se o nosso ex futuro ou futuro ex primeiro-ministro vai ter direito a fundo de desemprego ou se pelo facto de se ter demitido fica desamparado. Tenho esta veia solidária que me faz sentir como minhas as dores dos outros sobretudo quando a desgraça se abate em quem está desprevenido e pouco habilitado para a suportar e ultrapassar.
Digam o que disserem e o Português gosta mesmo de dizer mesmo que não tenha nada para dizer, o homem tem mérito e há muito injusto que não o reconhece mas o certo é que poucos souberam tão habilmente bater com a porta e se porem ao fresco quando o calor apertou e ainda manter a crista encrespada para poder afirmar que só não volto para lá se não me quiserem cá e que quem vier depois só pode fazer pior porque melhor ainda está para nascer.
O que é certo e sabido é que Portugal tem carências de reconhecimento e falta de se afirmar como marca por dentro e por fora e se por cá temos tantas dúvidas do que somos e do que somos capazes de fazer por lá nem nos conhecem e tantas vezes nos confundem na cultura e na geografia. Assumindo a velha máxima que não há má publicidade, nunca ninguém como o nosso futuro ex conseguiu pôr Portugal nas bocas do mundo.
Hoje qualquer europeu sabe onde é Portugal e sabe que somos capazes de fazer tremer a Europa com a nossa capacidade de sermos incapazes de nos bastarmos e de gastar mais do que produzimos e de produzir políticos de craveira que não se deixam intimidar com a sua pequenez e nunca mas nunca aceitarão capitular e assumir que não têm futuro mesmo que o próprio País que desgovernam já não o tenha.
Daqui a uns meses parece que vai haver eleições e parece que já estamos em campanha eleitoral ou se calhar nunca se deixou de estar e eu acho que calhando era bom para o povo que se adoptassem novos métodos de escolha porque a malta está um bocado farta de ser enganada e a mim ocorreu-me que era útil alinhar os candidatos de frente e de perfil numa daquelas filas de suspeitos que se vêem nos filmes, os tais suspeitos do costume e depois cada um passava e olhava bem para eles e ponderadamente escolhia: “eu acho que aquele ali, o terceiro a contar da esquerda, com a gravata às bolinhas e sorriso de vendedor de automóveis com ar de nunca ter sido apanhado a receber uma gorjeta é capaz de ser o menos mau”.
Em bom abono da verdade nestas eleições não se devia deixar gastar um tusto aos partidos porque o dinheiro faz-nos tanta falta para outras coisas e bem vistas essas coisas até se podia fazer um sorteio ou decidir quem vai ser o próximo primeiro ministro num conjunto de jogos de aptidão daqueles que a miudagem jogava no recreio da escola quando eu era miúdo, lembro-me de alguns lixados que puxavam bem pelo corpo e pelo espírito e a final de contas pelas amostras que se perfilam na corrida não me parece que nos faça muita diferença que a coisa seja decidida ao berlinde, ao pião, à corrida de carica ou ao lá-vai-alho…
Afonsinhos do Condado – Leva-me contigo
Ainda não percebi se já toda a gente percebeu que nem todos percebem que estamos em crise. Eu não ter percebido é normal porque sou normalmente distraído já em relação aos outros já não sei bem se já não era hora de haver alguém avisado avisá-los que estamos mesmo em crise e que o dinheiro encolheu e os meses não e lá continuam com 30 ou 31 dias de calendário e que só o Fevereiro é que tem 10% de desconto em tempo se bem que no meu caso como trabalhei por dias contados bem me lixei e isso dito de uma outra forma que também acaba em i.
Ora se estamos de acordo que estamos em crise e que se calhar convinha haver cautela com supérfluos e outras coisa que até gostávamos de ter mas que se não tivermos paciência que não é por aí que o burro vai às couves ou às filhoses ou lá como se diz eu não percebo porque é que de repente se apela tanto e tão descaradamente ao consumo da coisa miúda. Bem sei que há uma guerra senhoras e senhoras, meninas e meninos entre as grandes superfícies que agora além de grandes também são médias e até pequenas mas nunca pequenitas mas a coisa já cansa, pelo menos eu canso-me que a idade também já não perdoa.
Ele é jingles e cantorias e mudanças e fusões e mais confusões de nomes e letreiros com palavrões e se há os que são verdes há outros que são vermelhões e os que puxam daqui e oferecem dali e promovem descontos imediatos ou para mais logo no talão ou no cartão e se dantes a malta era levada a invejar o vizinho por coisa grandiosa ou vistosa ou cheirosa agora vale tudo porque o que é preciso é que a malta compre e bendito seja quem postulou a propriedade comutativa da multiplicação que faz com que cem vezes uma seja quase tanto como uma vez cem.
Há que reconhecer que aqueles senhores não parvam pela inteligência e de saloia nada tem a sua esperteza porque grão a grão enche a galinha o papo e que um pouco mais que um bocadinho poucos reparam e que diabo muito mais que isso custa uma bica e um pastel de nata ou de feijão ou de outra qualquer região. Há que vender e não falta o que se venda e se não há inventa-se ou reinventa-se e o que era dantes uma coisa simples agora pode ser muito mais do que uma simples coisa bastando para isso dar-lhe mais cor mais sabor mais odor mais saber mais poder mais tempo mais portento e para isso paga-se apenas quase nada mais.
Eu compro, tu compras, ele compra e se nós compramos, vós quereis comprar e eles vendem. E é verdade que os tempos mudam e nós temos também que mudar com o tempo e nestes tempos de crise onde o desgoverno que parecia não saber ou querer governar se demitiu de vez da governação parece-me mais importante que nunca que o papel higiénico se possa comprar em cores fortes que condizem com os cortinados ou que tenha impresso motivos de design de acordo com o espírito de quem obra ou que a solvência do suporte se faça facilmente no remoinho da sanita e que seja ainda mais fofinho porque merda é o que não falta para limpar.
Mamonas assassinas - Mundo animal