Estou num quarto rodeado de rostos mortos. Alguns são variantes de cinzentos e negros e luz que se fixou no papel, o tempo que passou revela-se nos tons amarelados que vão apagando as imagens como o fumo se esfuma no nada. Nenhum me sorri, são sobretudo fotografias de homens como se não importasse muito ao passado fazer perdurar no futuro os rostos das suas mulheres. Na minha memória ainda tenho a cor de alguns dos rostos agora mortos, mas não me lembro dos seus sorrisos e pouco dos seus nomes. Aqueles rostos são responsáveis por eu estar aqui e exigem-me que os respeite é por isso que ali estão pendurados naquela parede branca, a minha árvore genealógica de raízes profundas e muitos ramos retorcidos.
Na minha família morre-se novo e eu alterno em querer quebrar a tradição ou aceitar o desígnio. Já não penso muito nisso, sei que a morte chegará um dia e que terei o meu rosto pendurado nestas paredes, mas gostava que alguém se lembrasse do meu sorriso. Espero que a morte chegue sem me avisar de véspera e sem hora marcada mas ambiciono ter tempo para me eternizar em obra que ainda não realizei. Venho aqui hoje olhar o único destino que tenho como certo, tudo o resto ainda posso escolher ou deixar que aconteça por acção ou acaso.
Agora, aqui e neste instante, não acredito que na morte possa ser mais que um rosto pendurado na parede e um corpo que apodrece na terra ou arde na urna mas sei de outros que pensavam como eu e que depois mudaram e passaram a acreditar numa continuidade espiritual por influência divina, glorificado no céu como recompensa pelas acções de bondade ou ardendo no inferno pelos actos do egoísmo. Eu não quero acreditar que na morte possa ser mais do que um rosto eternizado até o tempo me consumir de amarelo porque sei que o egoísmo é o maior dos pecados e eu sou egoísta e não quero viver a pensar que poderei ser na morte menos do que fui em vida.
Hoje vim aqui para confrontar estes rostos que não passam de sombras do passado, nenhum deles, por maior medo que me tivesse causado em menino, pode agora fazer-me mudar o que decidir fazer ou acusar-me por falta ou por excesso. Sou tão livre do seu julgamento no que for o resto da minha vida como eles são livres do meu julgamento no que restou da sua morte, um rosto pendurado na parede que apenas lamento que não sorria. Sei que o meu não será o último rosto na parede mas pergunto-me quem o pendurará e até quando a importância das paredes não suplantará a importância dos rostos mortos e todos acabem esquecidos numa caixa debaixo de uma escada como pasto para ratazanas.
Hoje aqui estive, quem sabe pela última vez a olhar para o passado sem lamentar que não retorne e a pensar que amanhã é já daqui a algumas horas e que nesse entretanto muitos rostos poderão ser pendurados em paredes ou esquecidos sem glória. Já decidi que amanhã será o inicio do meu caminho, quer ele me leve à imortalidade do reconhecimento ou à vontade do esquecimento, não voltarei a voltar a trás nem a olhar a luz que já se apagou nem recear ser julgado por quem já morreu. Fecho a porta e estou de novo tão só como estava antes mas sinto-me mais só ainda e preciso de acreditar que o que me falta agora já não me faz falta. Deixei o passado simbolicamente fechado naquele quarto onde será relembrado e celebrado apenas pelos rostos mortos, será um passado guardado sem sorrisos, porque esses trago estampados num rosto que ainda não morreu.
Nirvana - About a girl