Estou parado num sinal vermelho. A sociedade estabelece códigos simples para nos dar ordem como partes individuais que deviam funcionar num todo. Vermelho para parar, amarelo para atentar, verde para realizar, não há complexidades nas cores para que o cérebro não tenha dúvidas na mensagem, educação, formatação, condicionalismo reflexivo na mais pura e elementar essência. Como que para me contrariar os pensamentos observo um casal de cegos que atravessa a estrada à minha frente. De braço dado exploram o caminho com varas compridas de metal, tic tic tic tic e avançam. O homem é mais velho que a mulher, tanto podem ser um casal como pai e filha mas as varetas nunca se cruzam e é essa a dança que me fascina, tic tic tic tic, não consigo perceber a diferença de cada som porque só ouço tic tic tic tic, mas sinto que para eles há tics que são sons de cor vermelha e tics que são sons de cor amarela e tics que são sons de cor verde e o casal chega à segurança do passeio e procura a referência da parede e depois segue decidido para um café quase junto à esquina, encontram a porta com uma facilidade impressionante e deixo de os ouvir, tic tic tic tic.
Estou tão fascinado que me desligo do condicionalismo reflexivo que me diz para avançar porque o sinal ficou verde e sou empurrado de novo para a realidade por um coro de apitos e faces iradas de pessoas que não tem tempo a perder com um casal de cegos que não vê vermelhos, nem verdes, mas que sabem a diferença de cada tic tic e que até podem ser pai e filha mas que fazem dançar as varetas sem nunca as cruzar. Não consigo conceber poder ver sem os olhos e decido na minha visão romântica de que vejo aquele casal unidos pelo sangue e pelo defeito e pela qualidade na partilha da ausência de luz e que não cruzam as varetas para poder aumentar a amplitude dos sons da sua visão.
Não concebo imaginar sem uma imagem e não sei se sou afortunado ou limitado pela minha visão. Vi dois cegos que imaginei como um pai e uma filha cegos da sua cegueira e avançando de braço dado sem medo de superar os obstáculos que a vida ou o acaso ou o que foi que o destino ou o acidente lhes colocou no caminho porque é preciso avançar para poder chegar a algum lado. Não consigo imaginar uma imagem porque a vejo e não sei se nesta minha limitação não perdi espaço para a minha imaginação. Estou condicionado pelo preconceito de cores que não imagino porque as vejo e que me impõem reacções de avançar ou hesitar ou parar.
A minha cegueira não é física é uma cegueira de ignorância e não tenho com quem a partilhar de braço dado e sinto vontade de falar com aqueles cegos. Queria perceber como ouvem as cores e as cheiram e as sentem com a pele dos dedos. Queria poder apagar todas as cores e imaginá-las de forma diferente, sinto-me egoísta por isso, sinto-me egoísta pela atracção da liberdade da cegueira, sinto-me egoísta porque sinto que aqueles cegos provavelmente dariam tudo para poder ver o que eu vejo e não perceberiam porque quereria eu poder imaginar o que eles não conseguem ver. Fecho os olhos mas a escuridão não me liberta, é apenas escuridão sem nenhuma luz, a imagem do que me rodeia não muda no meu imaginário porque apenas fechei os olhos.
Queria hoje voltar a rebaptizar as cores, imaginar o amarelo do calor do Sol e o azul do som do mar e o verde do cheiro da relva acabada de cortar e o branco do frio da neve e o vermelho da paixão no sentir bater um coração deitado a meu lado na cama. Queria hoje inventar novas cores, a cor do suor, a cor de uma lágrima, a cor de um riso, a cor do amor e a cor do ódio. Queria hoje libertar a minha imaginação de todas as cores que me oprimem e libertar-me desta cegueira que me entra pelos olhos.
Wah - Story of the Blues
22 comentários:
Às vezes escolhemos ser cegos, eu vivi assim muitos anos: dei nomes novos a coisas que nem existiam, reconheci cores na sua ausência total e até encontrei expressões de carinho na incapacidade de amar. Nós temos a vantagem de pararmos com a nossa cegueira, os outros, aqueles que te fascinaram, não terão esse poder.
Muitos ovinhos de chocolate.
PS(não tendo nada a ver com este teu post, mas com o Fabulando, vais encontrar uma explicação para o coelhinho da Páscoa pôr ovinhos de chocolate, vais?)
Às vezes os mais cegos não são os que não vêem: são os que só vêem o que querem.
Memórias direitas para me poder lembrar delas como foram e não como as sinto agora. Só se estiverem direitas poderei saber que o que sinto não são partidas da minha mente e sim verdades absolutas :)
Cat,
Pior seria dar nomes velhos a coisas que só existem na nossa cabeça. Não há incapacidade de amar mas há pessoas incapazes de serem amadas, porque se tornaram secas com a sua mesquinhez, porque não conseguem ultrapassar a necessidade do ódio com que se alimentam. Acho que não leste o texto com a intenção com que o escrevi, todos temos as nossas deficiências, se aprendermos a viver com elas e a dominá-las podemos encontrar até fortuna no infortúnio.
Muitos ovinhos para ti e quanto ao coelho que põe ovos não é segredo nenhum que se trata de uma galinha travesti, andam por aí muitas. :)
bjs
Leonor,
É injusto catalogar a ignorância de cegueira ;)
O tempo vai ensinar-te que não há verdades absolutas nem mentiras inocentes.
Beijos
Finalmente o meu Louco preferido está de volta! Foi preciso chegarmos à única altura do ano em que os coelhos pôrem ovos (de chocolate, ainda por cima)para que o Louco reaparecesse.
Ainda há quem não acredite na Ressurreição!
Passada a parte armada em engraçadinha do comentário, deixa-me chegar ao comentário a sério:
Tal como o teu louco, tenho necessidade de dar cor ao que me rodeia. Aliás, mais que cor, cheiros. Tenho de associar cores e cheiros a sensações, a emoções, a vivências e experiências.
Que cor tem o cheiro daquele bocadinho da pele de um homem que fica mesmo naquela covinha na base do pescoço?
Feliz regresso e um bom resto de Domingo de Páscoa!
:D
Correcção: *põem ovos.
Ah!
Cuidado com as cáries. Os dentistas estão demasiado caros!
Sabes LBJ que os textos têm essa característica: se tiveres 10 leitores, terás, provavelmente 10 leituras diferentes e se calhar nenhuma coincide com a tua intençao quando o escreveste,mas isso tem a ver connosco enquanto indivíduos com vivências diferentes. Quanto às pessoas que são incapazes de ser amadas, desculpa mas não acredito, as pessoas não nascem amargas. Mas disso não posso falar porque aqui o meu precioso coraçãozinho não alberga sentimentos desses, nem gosta de estar próximo deles.
No que respeita aos ovinhos: obrigada, esta era uma história um pouco confusa para mim, mas inocente como sou não frequento esses ambientes de travestis e coisas assim :) Bom resto de Páscoa.
Story,
É o que dá também ser Jesus :)
O cheiro que descreves tem a cor da paixão :)
Relativamente aos dentistas a quem o dizes que eu depois de ter desperdiçado uma fortuna numa cremalheira alheia, lá tive que pagar o tratamento de uma dúzia de cáries e isso antes de ter que pensar seriamente em fazer coisas mais sérias ;)
Beijos Lambuzados em ovinhos de chocolate
Cat,
Eu quero que os meus textos tenham 20 leituras diferentes em 10 leitores diferentes e é para isso que me irei esforçar. Tens razões quando dizes que as pessoas não nascem amargas, mas há aquelas que realimentam o seu próprio azedume e posso-te garantir que conheço infelizmente uma pessoa incapaz de ser amada, nem por amor-próprio.
Podes ser tudo mas não me pareces que sejas inocente, mas sabes aquele ditado que as boas raparigas vão para o céu e as más vão a todo o lado. :)
Essa é a magia dos teus textos: múltiplas interpretações, mesmo na mesma pessoa. Se eu lêr o texto uma segunda ou uma terceira vez tenho a certeza que vou encontrar coisas que não tinha visto antes e interpretá-las sempre de uma maneira diferente.
Como sempre (começo a repetir-me eu sei): óptimo texto, óptima escrita. Parabéns.
Beijo:)
Parece-me que tu é que revelas um grande azedume, esquece, vai em frente, vive e deixa viver. Diverte-te.
Quanto à minha inocência...que raio de insinuação é essa? Ok eu até vou a todo o lado :) porque o céu parece-me um bocadinho ensonso.
Tem uma óptima semana.
Ora aí está uma coisa que ainda não tinha parado para pensar, como será que as pessoas cegas vêem o mundo?! será que nós é que somos os cegos?!
Muito interessante essa abordagem.
Bjs
Fairy,
Obrigado por veres magia na forma como disponho as letras :)
Sabes que isso até a mim me acontece quando releio algumas coisas que escrevo :D
Mais uma vez obrigado.
Beijos
Cat,
Não entendo porque teimas em me querer colar etiquetas, se um dia ficares desempregada sempre podes procurar emprego numa mercearia. :)
Vivo sim, cada dia melhor e já me deixei de me preocupar como os outros vivem, não é problema meu.
Não faço insinuações muito menos relativamente à tua inocência. O céu é INSOSSO sim e ainda bem que não és professora de Português como uma que conheço que se diz “geitosa”, senão coitados dos teus alunos. :D
Tem também uma óptima semana.
Fátima,
Pois é, às vezes só vemos com os olhos…
Beijos
Bom post LBJ.
Como ouvi um cego (físico) dizer uma vez:
- As minhas cores são as texturas e as temperaturas!
E tudo adaptação, embora eu acho que entrava em depressão profunda se ficasse sem a possibilidade de usar o sentido da visão, para além de altamente condicionado ao nosso mundo super-visual (como dizes e bem, estamos muito condicionados à sinalética global por razões óbvias), imagina-me não poder pegar num livro de Banda Desenhada, eu que tenho prateleiras e prateleiras disso...
(Ainda não descobri quais os gostos comuns que falaste mais atrás...)
:D
Abraço
Cegos somos todos, numa ou noutra altura da nossa vida. O importante é que comecemos a abrir os olhos para dentro de nós, e a aceitar o que lá mora (seja luz ou seja sombra).
Gosto muito destes teus "devaneios" de louco, porque é como se as palavras fossem enchendo os olhos aos bocadinhos e nos enovelassem por entre as letras... chega-se ao fim e respira-se fundo, toma-se o gosto e fica o sabor leve de um sentido partilhado.... (isto faz sentido???)
Beijo
entao inventa novas cores. porque nao? :)
eco
Bongop,
Desculpa o atraso na resposta.
Dúvido que alguma vez viéssemos a gostar de BD se tivéssemos nascido cegos. Mas tens razão perder a visão depois de ter visto deve de ser algo terrível.
Não são gostos, são características :)
Abraço
Luz,
Peço desculpa pela demora.
Não somos cegos, teimamos ou temos receio de abrir os olhos.
Faz sentido sim é esse o sentido que quero fazer :)
Beijos
Eco,
Também te peço desculpa pela demora.
Inventarei novas cores, parece-me bem.
Beijo
Enviar um comentário