quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Diário de um louco impoluto – Dia 24


Sinto que há demasiado tempo não me transcrevo neste diário. Sinto falta da catarse de deixar as palavras reflectirem o meu sentir, deixar os verbos desmascararem a minha raiva, deixar as virgulas assinalarem as minhas dúvidas, deixar-me escorrer por entre o que escrevo.

Sinto que há demasiado tempo ando a adiar o amanhã e a continuar a lamentar o ontem enquanto hoje ainda me perco e se calhar por isso ou por outra razão qualquer estou a caminhar por entre árvores espaçadas e terra batida. O dia está solarengo e a pedir uma sombra e procuro-a sobre um banco de madeira maltratada pelos anos e por muitos que o usaram para muitas coisas. Os veios estão abertos como gretas e cruzados aqui e ali por riscos incertos de pontas arrastadas de navalhas e bicos de pregos, reconheço esboços de corações atravessados por setas e promessas de amor eterno. Gosto do árido das tábuas e verifico que a ferrugem cristalizou nas ferragens e não me suja as mãos.

Sinto que há demasiado tempo não me preocupo com o que sinto ou que sinto que devia de me preocupar com o que não sinto e acabo por encolher os ombros e deixar acabar mais um dia com a certeza que amanhã virá outro e que há sempre tempo para tudo desde que o queiramos verdadeiramente mas eu sei que o tempo tem os dias contados e bem contados. Admiro o banco onde estou sentado e a capacidade que teve de envelhecer desempenhando o seu papel. Admiro ou talvez inveje o que já testemunhou e a sorte de ser um objecto inerte livre de sentir colocado num local onde o vento sopra e a chuva cai e o Sol brilha ou se esconde atrás das nuvens e onde se cheira a relva e as folhas caem e de ser útil sem questionar a razão de o ser ou querer ainda ser mais que apenas útil.

Sinto que há demasiado tempo ainda para me sentar neste banco mas que é demasiadamente pouco para o que quero que me falte e entre o que me falta e o tempo que me resta há uma disputa e eu estou sentado neste banco a assistir sem querer tomar partido. Vejo lá em baixo uma velha dar de comer aos pombos. Penso que já uma vez escrevi que não gosto de pombos. Não reconheço utilidade aos pombos e acho que a única coisa que os pombos fazem é comer e cagar e entre as duas foder e reproduzir-se como ratos. Costumo dizer que os pombos são como ratos com asas e se acreditasse em Deus nas minhas preces perguntaria: Diz-me Deus porque criaste os pombos? Acho que se acreditasse em Deus e lhe fizesse esta pergunta iria ter uma resposta, posso ter dúvidas na existência de Deus mas não tenho nenhuma dúvida que se perguntasse para que é que servem a merda dos pombos ele me diria e de forma a que eu iria perceber e entender. Se calhar aquela velha que está a dar de comer aos pombos, acredita em Deus e um dia perguntou-lhe e agora que já sabe para que é que servem a merda dos pombos, passa todos os dias por aqui com pão que esfarela para os alimentar para que possam comer e cagar e entre as duas foder e ainda cumprir o desígnio de Deus.

Sinto que há demasiado tempo que estou aqui sentado neste banco a ver uma velha a cumprir os desígnios de Deus e pergunto-me se quando ela se dirigiu a Deus e lhe perguntou para que é que serviam os pombos se não estaria aqui sentada neste mesmo banco e se não estou a perder a oportunidade de também eu encontrar a minha resposta. Parece-me fácil acreditar, mais fácil que continuar a duvidar que não há razões para a existência dos pombos e que os problemas existencialistas dos homens se podem resolver percebendo que há sempre uma razão para além de comer, cagar e entretanto foder, basta acreditar.


Jethro Tull - Too Old To Rocknroll Too Young To Die

8 comentários:

Ana Camarra disse...

Se calhar estiveste mesmo muito tempo tão parado como esse banco,se calhar estiveste muito tempo só a cumprir as funções básicas e automáticas, se calhar tenho medo que me aconteça o mesmo.

beijo

Anónimo disse...

Saudades do louco!
Se calhar muitos de nós ficamos demasiado tempo sentados nos bancos que estão por aí... Se calhar muitos de nós também adiamos indefenidamente o amanhã.
É sempre um gosto ler-te.
Beijinho.

P.S: quando descobrires para que servem os parvos pombos diz-me, eu também gostava de saber. E nutro por eles um grande ódio.

Pronúncia disse...

LBJ, os pombos existem por uma razão... sobraram asas, e Deus tinha que as usar. Pensou em nós, e decidiu que não... não as podia aplicar nas vacas! (e inventou os pombos)

Sant'Iago disse...

que saudades caramba de te ler ;)
ora aí está um post que é um must.
bora lá mais catarses LBJ

Storyteller disse...

Parece que já é possível comentar-te...
Sendo assim: grande regresso, sim senhor! Já tinha saudades - muitas - do teu Louco!
:D

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Ana disse...

olha, a falta de vírgulas deve-se à falta de dúvidas??



fuuuuuuuuuugiiiiiiiiiiii!


:D


(desculpa, não consigo estar em todo o lado ao mesmo tempo, nem em mim, quanto mais)

Gata2000 disse...

Estou sem folêgo, será a falta de virgulas, ou apenas a tua escrita?

Que giro, acho que ao olhar para os pombos percebeste exactamente o designio de Deus para os homens, comer, cagar e entre as duas foder.
Eu acho que ele te respondeu, e tu nem te apercebeste - caso exista naturalmente.

Bjs