terça-feira, 9 de agosto de 2011

(À Suivre) – 04

Na verdade durante algum tempo senti-me mesmo enganado, defraudado, traído e embrulhado por aquela conversa de que ia ter um maninho, primeiro porque tardava a chegar e eu não conseguia entender porque tinha de vir de tão longe de outras terras nem porque é que as minhas birras de lágrima farta, berro de ficar rouco e pontapé no chão para que chegasse logo à tarde ou quando muito depois do jantar não resultavam em nada e segundo porque quando finalmente chegou não servia para brincar. Não tenho qualquer memória da chegada do meu irmão lá a casa. Sempre fui muito distraído e trancado no meu mundo e provavelmente um dia levantei os olhos do que me entretinha e reparei que havia algo diferente, algo que me tirava do centro das atenções, algo que fazia barulho e que não cheirava assim tão bem de perto e que não eu podia apertar e de preferência nem mexer e que era meio avermelhado com pouco pêlo e que por muito que eu insistisse não se podia devolver na loja nem trocar por outro bicho.

Tenho ideia que o tipo comia que se desunhava e tenho ideia que quando não estava a dormir estava a mamar e tenho ideia que não lhe podia dar batatas fritas e tenho ideia que apanhei com força nas mãos e no rabo por ter voltado a tentar quando toda a gente estava distraída mas eu era teimoso e convencido que se lhe ensinasse rapidamente a gostar do mesmo que eu gostava tudo iria melhorar na hora da refeição e que a sopa de hortaliça e as batatas cozidas com pescada, cenoura e brócolos e o pão sem manteiga nem doce de tomate seriam banidos para todo o sempre para outras casas de meninos sem irmãos. O que é certo é que mesmo sem a minha ajuda ele lá foi crescendo e um dia começou a gatinhar e noutro dia a arrastar as pernas entre a mesa e o sofá e pouco depois a andar de uma forma que me fazia rir e rir lançando o corpo para a frente e balançando as pernas para não as deixar fugir e não tardava nada já corria atrás de mim a destruir-me os brinquedos que não conseguia engolir.

Não era de todo verdade que o meu irmão fosse realmente parecido comigo como toda a gente dizia, a mim ninguém me convencia disso. Eu tinha aquela imagem de miúdo esperto e vivaço que num instante parecia estar a perceber as conversas dos adultos e no seguinte já tinha esquecido tudo e dado com a cabeça na porta porque não tinha reparado que esta estava fechada e chato de levar às lágrimas na hora de comer e de deitar e que dava voltas e voltas na cama antes de adormecer porque via em cada sombra do quarto uma colecção de coisas e outras coisas e ele era redondinho fofinho e pestanudo.

A malta da rua tinha quase toda a mesma idade mais dia menos dia, mais mês menos mês e todos eram ainda filhos únicos ou tinham irmãos mais velhos que não os queriam aturar e quando apareci pela primeira vez com o meu irmão a tiracolo balbuciando desculpas que ou o trazia comigo ou não podia vir brincar eles não foram de modas e adoptaram o puto como mascote do grupo. Para contrariar o ar convencido que o meu irmão passou a assumir desde esse dia nunca me abstive de lhe dizer que tudo teria sido diferente se algum de nós tivesse um cachorro.

(À Suivre)

Rickie Lee Jones - Chuck E's In Love

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