domingo, 31 de julho de 2011

(À Suivre) – 03

A vantagem de ser criança é de podermos contar as coisas mais bizarras aos adultos, aqueles que nos amam ou nos estimam ou nos têm como seus que estes sempre vão anuir a sua concordância condescendente muitas vezes sem sequer nos ouvir e se insistirmos com um: “não me estás a ligar nenhuma” ou um: “Mãe! É mesmo verdade não estou a brincar” lá nos arriscamos a uma festa no cabelo e a uma explicação mais cientifica que tratará de desmistificar o encanto da coisa misteriosa e torná-la meramente banal, segura e sem mais razões para temores. Neste caso terá sido o eco e algum vento caprichoso que trouxera a voz canora de uma casa mais distante e afinal as pessoas andam na rua tão ocupadas com os seus problemas e tão preocupadas com os problemas dos outros que já não ouvem nem os seus próprios passos quanto mais a poesia de uma música cantada algures.

Outra vantagem de ser criança é que temos sempre mais que fazer do que ficar muito tempo a matutar no mesmo e depressa troquei a minha coisa estranha por outra coisa qualquer, talvez um filme antigo de aventuras com heróis de bigode fino ou o mergulho num novo livro do Júlio Verne ou a invenção de mais um jogo que metesse caricas e buracos e o aproveitamento engenhoso de detritos para construir obstáculos e o assunto ficou esquecido até um dia porque há sempre um dia em que os assuntos esquecidos regressam mas esse dia ainda ia demorar.

Agora que penso melhor no assunto, eu ainda não deveria ter mais do que duas mãos cheias de anos ou quanto muito uma dúzia mal medida, porque naquele dia ainda andava na rua sem o meu irmão colado às canelas a chatear-me a molécula ou a imitar-me em tudo o que fazia e o meu irmão como todos os irmãos mais novos do mundo sabia bem aproveitar os caminhos de conquista que tanto me tinham custado em choro e pieguice e teimosia e castigos e ganhava por direito antecipado de irmandade os direitos que por direito eu só tinha tido já em idade avançada o que me fazia sentir que tinha desperdiçado grande parte da minha vida a lutar pela vida enquanto ele era um privilegiado matreiro a quem tudo lhe caia no colo de mão beijada ou que tinha nascido já de rabo virado para a lua em noite de lua cheia. Na verdade sem nunca o admitir amei o meu irmão desde o dia em que soube que ele estava a crescer dentro da barriga da minha Mãe.

Na prática, o meu irmão assim que começou a juntar letras e a trazer trabalhos da escola para fazer encostou a minha Mãe à parede e se eu podia ir brincar para a rua depois dos deveres porque é que ele tinha que ficar em casa? Porquê? Mas diz lá porquê? E porque sim e porque mandas não é justo! E não gostas de mim! E gostas mais do meu irmão! E se ele pode porque é que eu não posso! E eu já sou crescido! E eu porto-me bem! E eu prometo que faço tudo o que o meu irmão mandar! E eu não saio do passeio! E não sei se por cansaço ou porque já se tinha esgotado em argumentos anteriormente comigo, a minha Mãe cedia e lá vinha ele com um palmo abaixo de mim a calcorrear escada abaixo e eu aparentemente danado que nem um peru em vésperas de consoada mas na verdade feliz e contente por ter ali um seguidor devoto pronto a papaguear todos os palavrões que lhe ensinava e a admirar com brilho no olho qualquer disparate que fazia ou trambolhão que dava.

Não me lembro se contei ao meu irmão da minha coisa estranha, provavelmente devo ter contado com o cuidado de somar assombro e assombração à estória e ele deve ter escutado de boca aberta e pestana arregalada e passou a noite agitado a balbuciar temores no sono e eu de sorriso sacana nos lábios.

(À Suivre)

Queen - 'Somebody To Love'

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