quinta-feira, 21 de julho de 2011

(À Suivre) – 01

Quando somos crianças somos pequenos e talvez por isso ou porque ainda nos falta outra perspectiva tudo nos parece grande, distante, difícil e inacessível. Do meu tempo de criança guardo poucas memórias e muitas vezes me pergunto se esta ausência de recordações não me fará falta, se não poderia eu ser outra pessoa se conseguisse recordar-me das casas onde cresci, do que gostava menos de comer, do meu primeiro choro consciente de razão ou das coisas pouco importantes que me faziam feliz.

Gostaria de me lembrar da cara do homem por detrás do balcão da mercearia onde o meu Pai comprava o café. Nem sequer tenho a certeza que fosse um homem, talvez fosse uma mulher daquelas que deixaram de sorrir um dia por qualquer razão congelando para sempre as rugas da boca e para quem os clientes eram interrupções de desgosto e incómodos mas lembro-me do cheiro forte dos grãos amontoados em pilhas castanhas e negro doirado e de grandes frascos de vidro cilíndrico tapados por rolhas achatadas e que a minha cabeça não ia acima de metade do balcão que era cinzento esverdeado ou azul muito claro e depois lembro-me do ruído e do silvo do moinho.

Quando somos crianças a memória não é uma coisa importante e talvez por isso não arrumamos os dias em gavetas, alguém com autoridade sapiente tinha que explicar aos nossos Pais que nos deviam ensinar desde logo a lembrar porque o que esquecemos nos pode vir a fazer falta e que poderíamos até ser talvez outras pessoas.

Ainda assim há coisas que me recordo tão distante como se as estivesse a ver agora ou ainda ontem como por exemplo o meu Avô que mesmo na minha falta de outra perspectiva de criança e pequeno era muito grande, grande no tamanho e na dimensão, grande na forma como me olhava e ralhava, grande na maneira como se fazia respeitável sem me fazer medo. Herdei do meu Avô os dedos compridos e os lábios grossos e talvez pouco mais, foi um homem desperdiçado pelo tempo mas que mesmo assim sabia que a vida se vive enquanto se é vivo e que fez o que pôde para a viver bem com o pouco que esta lhe deu.

Costumava andar com uma pilha de papéis no bolso da camisa, pedaços de jornal, folhas brancas e pardas, coisas com escritos e até dinheiro bem escondido no meio, nunca me lembro de o ver usar uma carteira e provavelmente andava com os bolsos cheios de moedas, mas a minha memória de criança é parca e talvez por isso recorro à imaginação para tapar tanto buraco e se calhar se me lembrasse da cor da carteira do meu Avô ou se cheirava mais intensamente a cabedal quando se molhava ou se era tão pequena que não coubessem lá todos os papéis que o meu Avô guardava no bolso da camisa, quem sabe se hoje eu não poderia ser um outro homem ou pelo menos talvez porém soubesse que queria mesmo ser alguém diferente mas sei com absoluta certeza e convicção que quereria manter por escolha os dedos esguios e os lábios cheios que dele herdei.

Na minha primeira memória desta coisa estranha, eu já era um rapazote, talvez por volta dos treze ou catorze num daqueles dias em que o destino conspira para nos deixar sozinhos na rua sem amigos para brincar ou porque está ainda muito calor ou porque há deveres ou porque não se come a sopa toda ou porque se bate na irmã mais nova com pouca força suficiente para a fazer chorar ou porque se calhar ainda vai chover e acabamos a dar pontapés nas pedras sem saber bem se vamos para casa roçar o rabo pelas cadeiras ou nos aventuramos um pouco mais abaixo à procura de outras coisas ou o suficiente para poder ter que contar à malta mais tarde que nem sonhavam o que tinham perdido.



(À Suivre)




Edith Piaf - Autumn Leaves (Les Feuilles Mortes)

3 comentários:

Ana disse...

A memória traz-me à memória a memória de porque é que escreves sobre memórias :D

Malta! :D

Tenho memórias antigas, mas a maioria está já deturpada. Acho q só tenho memórias mais completas do tempo em q vim morar pó algarve, a partir dos 3 anos. Mas não me lembro do que gostaria de me lembrar.

Nuno Amado disse...

Um excelente texto Manuel!
Fez-me relembrar e pensar nalgumas coisas que deixamos para trás e que foram importantes para o meu crescimento.
"Quando somos crianças a memória não é uma coisa importante e talvez por isso não arrumamos os dias em gavetas..." é uma excelente frase/pensamento.
:)


Abraço

Artes e escritas disse...

Lá vou eu com os meus palpites. Tenho comigo uma tese sobre a memória e a música defendida por uma professora. Temos várias memórias, a tátil, a auditiva, a visual, etc., uma sugestão para textos. Gostei muito dos seu blog. Um abraço, Yayá.