segunda-feira, 25 de julho de 2011

(À Suivre) – 02

Virei a esquina cauteloso. Para um miúdo de treze ou catorze anos, franzino e pouco dado a bravuras solitárias a nossa rua era o nosso refúgio, o santuário onde pouco mal nos podia acontecer, éramos crias legítimas daquele ninho comunitário e sabíamos que haveria sempre alguém por ali que nos conhecia e que provavelmente até trataria na primeira pessoa os nossos pais e que numa aflição nos podia ajudar ou pelo menos seria crescido o suficientemente para dissuadir os facínoras invasores das pracetas adjacentes de nos virem aplicar uns valentes sopapos ou pontapés. Pensando bem naquela altura éramos muito territoriais.

Na maior parte das vezes para manter a integridade do território as questões mais complicadas eram resolvidas à distância com uma ou outra pedrada e sobretudo recorrendo ao insulto gritado de longe que invariavelmente era muito mais certeiro que os calhaus atirados com pouca força e convicção. O nosso reino ia desde a padaria até à outra ponta da rua onde passava o comboio embora em boa verdade se pudesse considerar a padaria como terreno neutro, uma espécie de edifício fronteiriço onde todos podiam ir para comprar carcaças e pão de quilo e de quando em vez até um bolo sem riscos de confronto. Não seria mau se todos os armistícios fossem como o nosso, escritos com farinha, ovos e açúcar.

A minha rua desembocava numa pequena praça rodeada de edifícios de dois e três pisos que tinha o chão coberto por grandes pedras ovais de muitos tamanhos e variantes cores ou tonalidades de branco e rosa. Diziam os mais velhos que antigamente existia uma fonte mesmo no centro da praça e que um dia, sem ninguém saber porquê, a água mudou de cor para um vermelho ensanguentado e nem os senhores da câmara, nem as benzas do senhor padre, nem outros rituais mais pagãos conseguiram resolver o problema e decidiu-se demolir o tanque, tapar o furo e aterrar a coisa para erigir ali uma estátua de um homem de bigode e casaca comprida que poucos sabiam quem era mas que todos conheciam como o homem de bigode e casaca comprida e assim com o tempo se rebaptizou a praça.

Não havia muita gente e talvez fosse Sábado. Tenho a convicção que todas as coisas interessantes que me aconteceram na vida aconteceram num Sábado. Por outro lado, se andava pela rua era porque não estava na escola e isso com muita pena minha só podia acontecer num Sábado ou nas férias ou num feriado ou já bem à tardinha, mas se estivesse de férias ou fosse feriado teria com absoluta certeza companhia para brincadeira e não era tardinha porque me lembro que havia muita luz que se reflectia nas janelas dando à praça um efeito flutuante como se as casas em volta se suspendessem no ar sobre uma tela invisível. Não havia muita gente e de certeza que era Sábado.

Mais ou menos a meio de um dos lados da praça ficava a minha loja favorita, uma pequena papelaria que vendia tudo e mais alguma coisa e que tinha na montra esticados de uma ponta à outra vários fios de pesca onde eram pendurados, com molas de madeira, postais e revistas e livros aos quadradinhos e tantas tantas vezes arrastei a minha mãe pela mão até ali, confiando na sua costumeira permeabilidade à minha pedinchice e de dedo estendido lá lhe implorava: “ Ò Mãe é só aquele ali que é a continuação da estória que me compraste na semana passada e a estória é tão gira e eu queria saber o que vai acontecer ao xerife e se o menino se salva, vá lá, vá lá é só este, não te peço mais nada…” e depois desfiava o rol de promessas habituais que fazia questão de cumprir pelo menos até acabar de ler o livro.

Estava embevecido a admirar a complexidade de uma capa colorida que conseguia juntar em tão pouco espaço desenhos de leões em caçada e barcos de piratas e carros de corrida e naves espaciais aos tiros umas às outras quando me pareceu ouvir cantar. Primeiro era um sussurro sem palavras e depois uma voz distinta e grossa de homem que cantava naquilo que me soava ser Francês, uma melodia melancólica de sílabas arrastadas e erres carregados. Olhei em volta e não consegui perceber de onde vinha o som que parecia ocupar toda a praça e era totalmente indiferente a todos os que passavam menos a mim. A medo perguntei a uma senhora gorda de vestido às bolinhas e chapéu de palhinha esticada e enrolada daqueles que hoje parecem estar de novo na moda se sabia quem estava a cantar e ela respondeu-me muito afogueada que eu devia estar a sonhar e que para além do grasnar dos pombos que não sabiam fazer outra coisa do que barulho e porcaria por todo o lado não se ouvia um assobio.

Saí dali a correr para a segurança da minha rua e pelo sim pelo não, não contei nada a ninguém e fui jogar ao berlinde.

(À Suivre)


Amy Winehouse - Fuck Me Pumps
(RIP)

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