domingo, 15 de novembro de 2009

Diário de um louco impoluto – Dia 17


Hoje pela primeira vez em muito tempo não senti um sufoco sem explicação. Cantarolei uma música sem destino enquanto tomava um duche, fiz ou desfiz a barba sem desprezar a imagem reflectida no espelho e apreciei o que comi antes de acender um cigarro. Fumei sentado a olhar o fumo e a cada chupão observo o incandescer laranja de fogo que me consome um pouco mais de tempo e penso que consumi a minha vida passada como um cigarro fumado à pressa sem apreciar o seu prazer e o seu passar, apenas pelo vício e pela necessidade física de a consumir.

Não me lembro porque comecei a fumar, um dia como muitos experimentei e não me lembro porque não gostei mas sei que não gostei e por isso voltei a experimentar e não gostei um pouco menos e continuei a experimentar até deixar de não gostar. Um dia como muitos passou a fazer parte da minha rotina consumir fumo, queimar folhas secas enroladas em folhas de papel que transformo em cinza. De cada cigarro que fumo resta uma ponta alaranjada que me deverá proteger de algo que não entendo bem e um monte de cinza sem valor e o fumo que fiz passar por mim e que se dissipa deixando ainda um cheiro que não gosto.

Cada vez mais fumo de uma forma egoísta, um acto privado de satisfação de vício. Porque não gosto do cheiro que resta no ar de um cigarro consumido não entendo o acto social de fumar em grupo e fujo do fumo dos outros para me esconder no meu. Não sei se perdi amigos por fumar ou por não fumar mas fui acabando sozinho acompanhado por um cigarro e depois outro porque parece que haverá sempre mais um cigarro que se pode acender num acto antecipado de necessidade e que depois se vai diminuindo em fogo laranja incandescente até restar uma ponta alaranjada que me sobra e me falta de entendimento.

Vêm-me sempre à boca o primeiro cigarro da manhã. Faz-me tossir de forma violenta como se o meu corpo quisesse expulsar aquele veneno volátil ou dar-me um aviso que estou a persistir num erro, persisto em ignorá-lo, mergulho na crença de que evitamos a ressaca continuando a beber e que não fumo o suficiente para tornar os danos irreversíveis e que um dia irei parar e todo o mal não passará de cinza inútil de um cigarro que se consumiu num tempo que ficou para trás. Resisto a acender mais um cigarro porque o fumo irá deixar ainda um cheiro que não gosto nesta casa onde necessariamente terei que dormir esta noite e saio para a rua.

Saí para a rua e deixei de resistir e acendo mais um cigarro isolado numa esquina entre caminhos que me podem levar a uma vida de cigarros já consumidos ou a outra vida que me traga cigarros que consiga fumar sem desperdício de cinza e fumo e pontas de cor alaranjada. Estou parado numa esquina, só com o meu cigarro e sem a ouvir a primeira vez ouço-a repetir: “Dás-me lume?”. Viro-me e ela está ali na minha frente também de cigarro entre as mãos e a boca com um meio sorriso nos lábios: “Não te importas de me dar lume?”. O cabelo já não é amarelo mas feito de muitos dourados e castanhos e sorri com olhar traquinas ou travesso e sinto-me confuso porque nunca os soube distinguir nos olhos de uma mulher.

Faço brotar a chama da ponta do isqueiro que treme soprada por um vento que não consigo ver e a extingue. Volto a insistir e a chama resiste uns segundos mas não o suficiente para conseguir contaminar de fogo a ponta do cigarro e sinto que me sente a insegurança e aproxima o rosto das minhas mãos que protegem agora o fogo e reparo no fumo que se enrola por entre os dedos e sobe ao céu em espirais. Continua a sorrir enquanto dá baforadas curtas com o cigarro que mal lhe toca os lábios vermelhos que eu imagino de fogo puro e mais quentes que a chama laranja que se vai reduzindo a cinza. Continua a sorrir e toca-me o rosto e beija-me suavemente a face sussurrando um obrigado e afasta-se e eu fico ali parado a ver aquele corpo afastar-se e eu fico ali parado apenas com um isqueiro nas mãos e eu fico ali parado a sentir um odor de perfume doce que me deixa ali parado sem saber bem o que fazer e sem o saber acendo mais um cigarro.


Pink Floyd - Have a Cigar

32 comentários:

Storyteller disse...

Afinal, cá está ele de regresso!
:D

Depois de ler e reler e tornar a ler, tenho duas palavras e um sinal de pontuação mais uma palavra e novo sinal de pontuação:

Gosto muito! Muitíssimo!

Tem uma sensualidade tremenda!

Consegui sentir todos os cheiros. Por acaso é curioso que dois dos cheiros que mais gosto sejam de algo que não costumo consumir: o cheiro do café e o cheiro de um cigarro acabado de acender.

Feliz regresso!

Francisco José Rito disse...

Hey, welcome back! Ate que enfim, pa! Todos os dias a vir aqui espreitar e nada.
Bem, isto promete...
Abraco e bom Domingo

catwoman disse...

Oi, voltaste em versão texto :)
Não sei bem o que te diga, acho que há muita escuridão no teu texto, talvez seja da noite, talvez do fumo, espero que não seja da alma! A noite eu gosto, o jogo de sombras, as luzes que brilham algures e nos fazem pensar noutras vidas que não a nossa, quanto ao fumo, já sabes que não sou apreciadora .De qualquer modo gostei. Bjs. e vou esperar que a tosse da manhã te ajude a libertar do cigarro da noite.

CB disse...

Welcome back!... :)

Fairy disse...

Ah finalmente de volta. Ja tinha saudades de te ler :)
E é um regresso envolto em fumo... Gosto muito.
Bom fim d semana
Beijo*

Pronúncia disse...

Excelente metáfora... bem vindo de volta! ;)

Bêjos

LBJ disse...

ST,

Ainda bem que gostaste mas nem penses que me vou pôr aqui a contar as palavras :D

Os cheiros são uma coisa estranha há alguns que se nos entranham e até sonhamos com eles.

Um Beijo

LBJ disse...

Boa noite Francisco,

Obrigado pelas visitas :)

Vais ver que vais gostar dos próximos e garanto-te que o dia 18 te vai fazer comichão daquela que se gosta de ter.

Um Abraço

LBJ disse...

Cat,

Há muita escuridão na minha vida e se calhar transborda para o que escrevo. Sei que não gostas de fumo e eu e esta parte corresponde à realidade também não embora fume tabaco :)

Vai voltando que a história vai continuar, não te posso é prometer finais felizes...

Um Beijo

LBJ disse...

Princesa,

Vejo que destilaste em algo doce e generoso, fico feliz.

Please be welcome.

Kisses

LBJ disse...

Fairy,

Obrigado, obrigado e obrigado.

Boa semana para ti uma vez que o fds já lá vai.

Beijos

LBJ disse...

Pronúncia,

Sabes que eu sou mesmo metafórico ;)

Bêjos

forteifeio disse...

Mas tu não sabes escrever mal?
Um pequeno texto mas tão bem embrulhado

Forte Abraço

mf disse...

Dear boy, have a cigar.
You're gonna fly high,
You're gonna make it...
;)

LBJ disse...

Forte,

Eu escrevo, ou melhor vou escrevendo :)

Obrigado pela amizade.

Forte Abraço

LBJ disse...

Hedgie,

You're gonna make it, if you try;

With a little help from my friends...

Kisses

VCosta disse...

Espectacular...
Grande parte do que escreves sobre o cigarro retrata bem a minha forma de pensar...
Abraço!

LBJ disse...

VCosta,

Obrigado, gosto de te ter por aqui e dentro de dias sai o dia 18 (previsto para 20 de Novembro), gosto muito do resultado e depois do fumo virá o fogo...

Abraço

Nuno Amado disse...

Muito fixe o texto!
E fala um tipo que não sabe porque começou a fumar, e que deixou de fumar para começar outra vez, e que deixou de fumar para agora ter uma situação de "fumo só quando me apetece".
Foi um texto muito "sensorial", parabéns!

DREAMS disse...

Bem, pela primeira vez li um texto teu e do ke li gostei, espero continuar a ver-te por aki, cheio de vontade de voltar a viver :-)

beijocas

LBJ disse...

Bongop,

Diz-te quem já passou por aí que não tarda nada estás a fumar mesmo quando não te apetece... :(

Se achaste este texto sensorial volta na sexta-feira para veres o que é um texto sensorial, este foi fumo o próximo será fogo :)

Abraço

LBJ disse...

Dreams,

Este foi o primeiro texto meu que leste, tens muito com que te entreteres, repara que este é o dia 17 e há 16 anteriores, mas espera pelo próximo que garanto que te vai deixar com vontade de leres os outros (sou modesto pois, mas sei reconhecer quando faço alguma coisa de jeito e gosto mesmo do que escrevi, dia 20 será publicado)

Beijos

DREAMS disse...

prontos agora conseguiste prender-me ao teu cantinho, e ke nao sou nada curiosa, ehhehehe
ja vou ficar a espera dos proximos capitulos :-)

LBJ disse...

Dreams,

Por aqui há sempre bolachinhas e bebidas várias para os amigos e tu sabes que és uma amiga por isso vai ficando.

beijos

Nuno Amado disse...

ehehehehe
O fumo "só quando me apetece" já dura vai para dois anos :P

Abraço

LBJ disse...

Bongop,

Andei mais de 20 anos a fumar 3 cigarros por dia, não te sobrestimes nem subestimes o poder da nicotina e do stress... ;)

Abraço

Cirrus disse...

É verdade que sim, e é verdade que já tinha lido o texto, mas não aqui no blog, por isso não vi o vídeo.

Trata-se de uma ironia bem marcada sobre a arrancada da banda para o mercado global.

Quanto ao fumo, meu caro, e quê?? Qual o problema? Matamos alguém? Embora que, se não ficasses parado, era menos um que fumavas...

;)

Ana disse...

Por acaso até me lembro daquela vez em que experimentei um cigarro. Tossi tanto, mas tanto que nunca mais peguei num... :D Anos volvidos, os meus pulmões agradecem ;-p ;D

LBJ disse...

Cirrus,

Nem me atrevo a discutir Pink Floyd contigo :)

Não matamos ninguém? Não sei responder a nós matamos um bocadinho com cada cigarro que acendemos :)

Abraço

LBJ disse...

Vani,

Acontece com todos, alguns de nós tontos insistimos... :)

Beijo

Fada disse...

Uns fumam, outros(as) comem doces...

Queres um docinho de ovos moles? :D

Beijinho :)

Gata2000 disse...

Gosto tanto de te ler amigo. Mesmo que seja enquanto te esvais no fumo de um cigarro, esse eterno companheiro para o bem e para o mal. Eu já tentei deixá-lo de lado, repudiá-lo, houve até alturas em que o consegui, mas um vicio é um vicio, e volto sempre ao conforta da sua companhia. Ao contrario do que ele significa para ti, eu gosto do cigarro social, mas eu também gosto muito de socializar, o que não gosto é do cheiro do cigarro dos outros, curioso que tembém fugo dele e gosto de me refugiar nos cigarros fumados na rua, em casa não o faço porque o cheiro se cola a mim e às coisas, e eu prefiro que as minhas coisas tenham outros cheiros, e que o meu cigarro seja apenas meu, ainda que esteja a socializar. Confusa? Eu? Nah! LOL