terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Diário de um louco impoluto – Dia 21


Estou num quarto rodeado de rostos mortos. Alguns são variantes de cinzentos e negros e luz que se fixou no papel, o tempo que passou revela-se nos tons amarelados que vão apagando as imagens como o fumo se esfuma no nada. Nenhum me sorri, são sobretudo fotografias de homens como se não importasse muito ao passado fazer perdurar no futuro os rostos das suas mulheres. Na minha memória ainda tenho a cor de alguns dos rostos agora mortos, mas não me lembro dos seus sorrisos e pouco dos seus nomes. Aqueles rostos são responsáveis por eu estar aqui e exigem-me que os respeite é por isso que ali estão pendurados naquela parede branca, a minha árvore genealógica de raízes profundas e muitos ramos retorcidos.

Na minha família morre-se novo e eu alterno em querer quebrar a tradição ou aceitar o desígnio. Já não penso muito nisso, sei que a morte chegará um dia e que terei o meu rosto pendurado nestas paredes, mas gostava que alguém se lembrasse do meu sorriso. Espero que a morte chegue sem me avisar de véspera e sem hora marcada mas ambiciono ter tempo para me eternizar em obra que ainda não realizei. Venho aqui hoje olhar o único destino que tenho como certo, tudo o resto ainda posso escolher ou deixar que aconteça por acção ou acaso.

Agora, aqui e neste instante, não acredito que na morte possa ser mais que um rosto pendurado na parede e um corpo que apodrece na terra ou arde na urna mas sei de outros que pensavam como eu e que depois mudaram e passaram a acreditar numa continuidade espiritual por influência divina, glorificado no céu como recompensa pelas acções de bondade ou ardendo no inferno pelos actos do egoísmo. Eu não quero acreditar que na morte possa ser mais do que um rosto eternizado até o tempo me consumir de amarelo porque sei que o egoísmo é o maior dos pecados e eu sou egoísta e não quero viver a pensar que poderei ser na morte menos do que fui em vida.

Hoje vim aqui para confrontar estes rostos que não passam de sombras do passado, nenhum deles, por maior medo que me tivesse causado em menino, pode agora fazer-me mudar o que decidir fazer ou acusar-me por falta ou por excesso. Sou tão livre do seu julgamento no que for o resto da minha vida como eles são livres do meu julgamento no que restou da sua morte, um rosto pendurado na parede que apenas lamento que não sorria. Sei que o meu não será o último rosto na parede mas pergunto-me quem o pendurará e até quando a importância das paredes não suplantará a importância dos rostos mortos e todos acabem esquecidos numa caixa debaixo de uma escada como pasto para ratazanas.

Hoje aqui estive, quem sabe pela última vez a olhar para o passado sem lamentar que não retorne e a pensar que amanhã é já daqui a algumas horas e que nesse entretanto muitos rostos poderão ser pendurados em paredes ou esquecidos sem glória. Já decidi que amanhã será o inicio do meu caminho, quer ele me leve à imortalidade do reconhecimento ou à vontade do esquecimento, não voltarei a voltar a trás nem a olhar a luz que já se apagou nem recear ser julgado por quem já morreu. Fecho a porta e estou de novo tão só como estava antes mas sinto-me mais só ainda e preciso de acreditar que o que me falta agora já não me faz falta. Deixei o passado simbolicamente fechado naquele quarto onde será relembrado e celebrado apenas pelos rostos mortos, será um passado guardado sem sorrisos, porque esses trago estampados num rosto que ainda não morreu.


Nirvana - About a girl

18 comentários:

Storyteller disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
LBJ disse...

Sei e compreendo porque te incomoda a morte...

A música é gira, sabes que os Nirvana me passaram ao lado no seu tempo? Gosto particularmente deste trabalho acústico.

catwoman disse...

A morte é uma consequência da vida, é o que fazemos até ela chegar que interessa, é aquilo que somos a forma como vivemos, como nos respeitamos a nós e aos outros.
Por isso,devemos viver o presente porque nunca sabemos se,de repente, ele não passa a ser passado. Se somos recordados ou não depende de nós, o principal é a forma como nos recordam.

Ana disse...

A tradição já não é o que era, pah!

Ana disse...

Não me consola nem o ser recordada nem a forma como o serei. Tiram-me a vida, tiram-me tudo, o resto não me interessa nem me consola. Tiram-me o Eu, tiram-me a vida. Qual anjo, qual luzinha, qual energia, qual recordação..no way. Ou continuo eu, ou não quero nada. Sou egoísta, muito egoísta. O que dói não é a morte, mas o desaparecimento do eu e da consciencia de mim. Até adormecer me assusta.

Anónimo disse...

Não gosto da morte. Incomoda-me. Não gosto de falar nela. Não gosto que as pessoas de quem gosto desapareçam para sempre. A memória de ninguém perdura no tempo. Existimos. Morremos. Desaparecemos. Todos temos a ambição de perdurar. Não perduramos. Nada fica. Mesmo que deixemos obra. Um dia, seremos esquecidos. Não gosto da morte. É a única separação totalmente definitiva. Tenho medo da morte. Tenho medo que ela me bata à porta e leve quem é meu. Tenho medo que me leve. Não quero deixar os meus. Não quero que os meus me deixem. A morte é feia. É cruel. É abandono.

VCosta disse...

Estou a pensar organizar já o meu funeral... ver o que e como iráser feito!
Ou então não... e isto é só uma ideia parva!
Abraço!
Bom fim-de-semana!

Francisco José Rito disse...

Ora entao bom dia!

Passei a deixar-te um abraco. Espero que estejas bem

Nuno Amado disse...

A morte em si não me incomoda, até acredito na reencarnação...
O que me incomoda deveras é o caminho descente para lá chegar!
Bom texto!

Abraço

Storyteller disse...

Andas desaparecido?
Que se passa?
Regressa, sim? Tu tens histórias para nos contar e, como tal, não podes desaparecer.

:)

LBJ disse...

Cat,

Antes de mais e serve para ti e para os outros amigos, peço desculpa pela demora na resposta mas outras coisas me tem ocupado a vontade (infelizmente) :(

Às vezes por muito que nos esforcemos seremos sempre recordados ou esquecidos de forma negativa...

Beijos

LBJ disse...

Vani,

Pois é mesmo por aí, somos o que somos em vida porque depois já não interessa nada.

Beijos

LBJ disse...

Anónimo (mas pouco),

Eu sei o que sentes e porque o sentes e espero que ainda falte muito para a tua angústia se concretizar e no entretanto goza o máximo da tua vida e daqueles que te são queridos.

Beijos

LBJ disse...

VCosta,

Também me parece uma boa ideia, eu no meu quero strippers e focas e um gajo qualquer célebre a recitar poemas todo nú :)

Abraço

LBJ disse...

Francisco,

Boa noite amigo, sabes que vou estando menos mal mas que ficarei melhor em breve :)

Abraço

LBJ disse...

Bongop,

Eu também já acreditei na incarnação, mas se pensares bem no assunto verificas que do ponto de vista estatístico não faz muito sentido :(

E o caminho também me incomoda, não consigo aceitar a degradação do corpo e tudo farei para a atrasar :)

Abraço

LBJ disse...

Story,

ÒÒÒÒÒÒÒÒÒÒÒÒÒÒÒÒÒÒH Story estou aqui!!!!!!!!!!!

Beijos lambuzados

Storyteller disse...

VIVA!!!
Parece que estás de regresso!
E com vontade de apanhar, pois continuas com essa dos beijos lambuzados...
Irra! Masoquista...

:D

Beijos belhequentos para ti! )ora toma!...)