sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Diário de um louco impoluto - Dia 4


Saem de um pequeno buraco. Seguem num carreiro que se estende como uma cobra ínfima feita de minúsculas partes que se agitam. Seguem numa ordem de ir e vir sem aparente nexo. Seguem sem sons de comando ou palavras de incentivo. Seguem sem notar que as observo no seu seguir, no seu agitar, na sua ordem sem nexo, no seu silêncio.

Agarro num pequeno pau e começo a fazer riscos no chão como obstáculos. No inicio alguma desordem e um debandar ao longo dos sulcos e depois de novo o carreiro se refaz e a minha acção é anulada pela vontade das formigas. Coloco o pau no seu caminho separando umas das outras e uma vez mais agitação, confusão e depois de novo o carreiro se refaz com os insectos habilmente a treparem o meu nada e a sua montanha.

Ponho-me a pensar se me conseguem ver, se sentem a minha gigantesca presença, se percebem que as podia esmagar sem esforço, apenas elevando o pé e deixando a gravidade fazer o resto. Podia esmagá-las por capricho ou porque sou louco ou porque queria demonstrar que tenho poder perante seres que me deviam venerar, porque neste instante eu sou quem pode decidir se continuam a ser formigas em carreiro ou pedaços desfeitos. Eu sou o mais perto de Deus que estas formigas podem alcançar, posso trazer-lhes abundância de comida e água, posso aligeirar-lhes o caminho ou posso destruir o seu mundo.

Imagino-me como formiga e elevo os olhos à procura do meu Deus. O que me distingue das formigas é a capacidade de pensamento ordenado, de aceitar, ignorar ou negar um Deus que poderá ou não ter o poder de pegar num pequeno pau e varrer o meu mundo, de me fazer feliz ou miserável ou louco ou mais feliz e menos miserável por me fazer louco e se me imaginar formiga e parte da raça humana que fez deste planeta o seu formigueiro e assumiu comportamentos de insecto em carreiro então poderá haver agora um pé levantado sobre mim pensando se me esmaga ou deixa viver mais um dia.

Debruço-me sobre as formigas, quase a tocar-lhes com o nariz e não noto nenhuma alteração de comportamento pela minha proximidade e sopro suavemente e faço uma voar uns centímetros e aterrar e voltar ao carreiro como se nada se tivesse passado e começo a cantar uma canção qualquer que me andava na cabeça desde manhã. É uma canção sem nenhum significado, apenas uma melodia que me ocupa o pensamento e me faz esquecer por uns momentos ideias teológicas de escalas finitas, sou Deus na minha imensidão perante o carreiro, sou formiga na minha insignificância perante o que desconheço e me faz pensar em melodias sem importância.

Sacudo o pó que se pegou às calças e abandono o carreiro à sua sorte ou à vontade de outros Deuses mais competentes que eu ou mais cruéis ou com outras vontades de agir, substituo o cantar pelo silvo de um assobio, agora a canção já só tem melodia e recordo que era uma que o meu avô gostava de assobiar, escrita por alguém estrangeiro e que ouvira num filme sem cores, no tempo em que o cinema eram actores e jogos de sombras e começo a preocupar-me com esta loucura que me faz pensar de mais em coisas sérias e na minha importância e no meu avô e na forma simples com que viveu a vida e na forma inaceitável como aceitou a inevitabilidade da morte como a vontade de um Deus que me dizia imenso à sua dimensão.

Velho tonto… Nada é mais do que factores de escala e para me provar da minha grandeza volto a trás e ponho a mão no bolso e encontro alguns farelos do bolo de arroz que comi de manhã e jogo-os na direcção do carreiro. Hoje fui um Deus generoso, trouxe abundância e não exigi devoção, nem templos nem sacrifícios e o carreiro desfaz-se numa dança de insectos que se atarefa em redor da minha bondade e sigo por ali abaixo a assobiar uma velha canção.


Zeca Afonso-A formiga no carreiro

11 comentários:

forteifeio disse...

Fabuloso, este texto. LBJ cada vez estás melhor este texto pode ser o principio de uma crónica de um livro do que tu quiseres.

Não há palavras.

Grande Abraço

Fada disse...

Às vezes, acho que somos muito parecidos!!!
:D

Mas, usualmente, sou uma deusa generosa! :)

Beijitos, adorei o texto, vou ao próximo!!! :D

LBJ disse...

Forte,

Grande honra me dás com as tuas palavras.

Forte Abraço

LBJ disse...

Fada,

Somos? Um dia temos que medir essas semelhanças :)

Foste ler o outro e perdeste-te? :P

Beijos

Fada disse...

Considera-te comentado no outro! :P
Bad boy!!!

:D

Medir as semelhanças para quê?? Basta-em constatá-las! :)

Beijitos :)

LBJ disse...

Fada,

Bad Boy? Eu...?

Medir as semelhanças, por exemplo eu tenho os dedos compridos e olhar esgazeado e tu? :P

Beijo

Fada disse...

Dedos compridos e o olhar nunca esgazeado: divertido, tímido, misterioso, confiante, magoado... Nunca esgazeado! :p

Beijitos

LBJ disse...

Fada,

Tu viste-me de longe por isso passou-te o olhar esgazeado :D

acertaste no magoado o resto tem dias :)

Beijo

PS. Se falares com a nossa amiga comum diz-lhe que está tudo resolvido que ela percebe :)

Fada disse...

Ei, a descrição é do meu olhar, não do teu!!!

Vou emailá-la, pois ainda não apareceu!... :s

Beijitos

LBJ disse...

Fada,

Desculpa, falaste no masculino porque te referias ao olhar e eu não percebi :D

Beijo

Fada disse...

Estás desculpado, eu percebi! :D

Já emailei e SMSei a nossa amiguita, se tiver resposta, logo te aviso! :)

Beijitos :)