quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Diário de um louco impoluto - Dia 2



Acabei mesmo por levar a camisa à lavandaria, não sei porquê aquele cheiro que sai das lavandarias desperta em mim um processo hormonal qualquer que me leva a pensar em coisas diferentes de roupa limpa. A senhora foi profissional e não ofereceu garantias que as nódoas iam sair e eu perguntei-lhe se não se sentia tentada a analisar as manchas das coisas que lhe entregavam. Uma mancha vermelha, podia ser sangue seco, vestígios de um crime hediondo e ainda impune, outras manchas podiam ser histórias de amor ou restos de ódios, ciúmes, marcas de solidão ou lágrimas secas, queria saber se existia um código de ética dos lavadeiros que a impedisse de revelar os meus segredos se os descobrisse e riu-se ,muito embora eu estivesse a falar a sério.

Expliquei-lhe que a nódoa era de molho, o amarelado tinha que ver com a mostarda que era uma especiaria sem efeitos secundários comprovados, apenas um condimento que servia para alterar o sabor da comida, de a tornar mais afeiçoada ao meu paladar e que gostava de sentir na língua sabores amargos e se não se importava de eu voltar apenas daqui a uma semana porque o cheiro ali incomodava-me, não que cheirasse mal mas porque me fazia pensar em coisas que não me apetecia pensar e disse-me que sim que podia voltar quando quisesse e reiterou que não fazia promessas de que a nódoa saísse e eu fiquei contente porque não gosto que me prometam coisas, sinto-me sempre logo devedor e teimo em me desapontar porque facilmente crio expectativas de outras coisas.

Fui beber um café. Não consigo beber o café sem açúcar mas tento pôr pouquinho, assim a modos que meio pacotinho daqueles que sempre nos informam de qualquer coisa, aliás os pacotes são muito subvalorizados como meio de comunicação, eu enquanto mexo o café sempre leio tudo de ponta a ponta, absorvo toda e qualquer informação, se me quiserem convencer de algo, esta é a altura ideal, aquela onde estou mais permeável a comprar um par de sapatos novos, uma estante para o escritório, aderir a uma nova religião ou votar naquele candidato que tudo promete e nada cumpre.

Esta minha predisposição de bicho manso e convencível tem muito a ver com o dilema com que me debato naquele instante em que pego na colher e a mergulho no líquido escuro e fumegante e fico sem saber se a devo rodar no sentido dos ponteiros do relógio ou ao contrário. Nunca consegui perceber qual é o mais eficiente e porque é que de uma maneira geral acabo por rodar sempre no sentido certo ou se calhar no errado, mas o que é certo é que o açúcar se dissolve e o café arrefece, porque eu nem gosto muito do café quente e faz-me impressão aquelas pessoas que pedem uma chávena escaldada, mais valia porem a língua debaixo da mangueira de vapor da maquineta e engolirem depois, ninguém me convence que isso não estraga o gosto do café, que as papilas gustativas não ficam dormentes e com vontade de emigrarem para outra boca de pessoa com mais juízo.

Terei que um dia destes voltar a falar de café, fiquei viciado já em adulto e tenho uma relação moderna e liberal com o café, não que consiga funcionar sem ele, mas se não o beber não ando a cair aos tombos, simplesmente o cérebro recusa-se a somar mais do que dois algarismos de um digito de cada vez e sou incapaz de articular uma explicação simples seja do que for, mas não fico desesperado com sintomas de ausência se a maquina estiver avariada ou se não tiver trocos, pura e simplesmente disfarço, faço cara de poucos amigos, daquelas que é melhor não me dizer nada porque a resposta sai torta e hoje consegui não escrever nada relacionado com loucura o que quer dizer que começa a fazer parte da minha normalidade.


Lisa Ekdahl-Cry me a river

17 comentários:

Ana GG disse...

Não gosto nada de ser a primeira comentadora ao serviço, mas esta minha mania de chegar a horas não me deixa outra hipótese.

Que queres que te diga...pois que gosto, gosto muito, mesmo muito da forma como transformas as coisas simples em contos. Mas disso já tu sabias, acho eu...

Ai como eu gosto desta música!

Ana disse...

Tu escreves ao sabor do pensamento, não? :) E esse pensamento não anda, cavalga, certo? :D

Ana disse...

E acontece-te muito deixares-te leva pelo pensamento, isto leva aquilo, aquilo leva àquele outro, aquele outro leva a este e TAU, sais-te com uma pergunta qq que, aparentemente, não vem ao caso?...

Ana disse...

* deixares-te levar

Ou, já ouviste, "bolas, tu mudas de assunto com uma velocidade!..."?

E pelos vistos tb ficam assim a olhar pra ti com ar de "este passou-se", quando te atreves a dizer em voz alta alguns desses pensamentos.

Também detesto o cheiro das lavandarias. É raro lá ir. Mas, na verdade, o meu ponto de encontro redoute é numa lavandaria. Mas até que é arejada e não tem aquele cheiro que se enfia pelas narinas e parece querer tirar-nos o cérebro por elas...

Não sei porquê, mas a tua pertinência em explicares à senhora de que é que eram as nódoas (claro que tinhas de explicar, não porque ela pensasse que podias ter assasssinado algo ou alguém, mas porque cada nódoa num tecido é um caso e precisa da sua abordagem própria...), lembrei-me de uma vez em que ia a entrar no elevador quando estavam a sair dois vizinhos. Uma, velhota, ostentava uma enorme nódoa negra à volta do olho. O outro, de meia idade, amparava-a. Abri muito os olhos, e pensei, apenas, a tonta da mulher deve ter dado uma queda e tanto (a mulher é tonta, mesmo, e é uma chatinha de primeira, não queiras ficar preso num elevador com ela...), cumprimentei-os e entrei no elevador. Nisto, a porta abre-se com violência, eu assusto-me, e aparece-me o homem que a acompanhava, muito aflito, gesticulando e gaguejando, Ò menina, ela caiu mesmo, eu não lhe bati!
As coisas que a gente se lembra, sabe-se lá porquê...;-)

#Não consigo beber o café sem açúcar mas tento pôr pouquinho, assim a modos que meio pacotinho daqueles que sempre nos informam de qualquer coisa# - tens a certeza que não te chamas Vani???????????? mmmmm, também mexes o café de forma a fazer bolhas? e depois rebenta-las com a colher? como se faz com a mousse de chocolate? :D

Se não gostas de promessas, estás apto a votar na MFLeite...ela promete que não promete nada!

já agora...tens horas??? ;-D

Passageira disse...

LBJ, seu texto é tão absolutamente gostoso que após ler este voltei ao anterior - até porque, o dois sem o um não seria a mesma coisa, né? rs...
Mas, menino, que delicia de narrativa! Várias coisas me chamam a atenção, mas falo apenas de duas.
Primeiro, gostei de como vc passeou pela interpretação das manchas. Muito interessante. Depois, o café! Bom saber que tenho algo que lhe interessa - embora eu já esteja querendo trocar a bebida lá de casa! rs...
Enfim, é bom demais te ler.
Um beijãozão

LBJ disse...

Ana,

A primeira? Foste a última ;))

Gostas? Não sabia, mas agora sei e fiquei contente :)

Esta senhora é um espanto e claro que a música ajuda, mas fica sabendo que eu vou para o teu buraco só para ouvir a tua sequência :)

Bêjos

Storyteller disse...

GOsto muito. Mesmo muito. Um louco são ou um são louco? De qualquer das formas, o conto está muitíssimo bom!
Aguardo com expectativa - grande! - os próximos!
:)))

LBJ disse...

Vani,

Um Tricomentário teu, adorei, adorei e vamos lá ver se não me esqueço de te responder a alguma coisa.

Sim às vezes escrevo mesmo ao sabor do pensamento, quase sem respirar e se beber café cavalgo, são as chamadas bôrras de cavalo descansado :)

E sim, consigo mudar de assunto e sim às vezes deixo sair cá para fora alguns pensamentos mas só com pessoas que gosto mesmo muito :)

Pois eu não sei se gosto ou não do cheiro das lavandarias, apenas não me deixa indiferente, sabes que fiz pesquisa na net e e não encontrei nenhuma explicação para o cheiro e só com isso perdi meio paragrafo, dava prái uma 30 palavrinhas :)

A tua história é fantástica e apetece roubar, mas dou-lhe a volta que nem notas :)))

Nessa da bolhinhas não me apanhas, mas já vi que gostas da Mousse como eu bem liquida ;)

Com as horas não te safas que eu não uso mesmo relógio, nunca usei ;)

LBJ disse...

Euza,

Delícia é ler as tuas palavras e somá-las ao meu vocabulário :)

Uma confidência, uma das minhas grandes referências á o João Ubaldo Ribeiro ;)

Já lá fui beber um cafézinho e soube mesmo bem, adoro seu sítio :D

Beijos

LBJ disse...

Storyteller,

São Louco foi canonizado por quem? :)

Me aguarda que eu volto :)

Beijo

Rafeiro Perfumado disse...

E no meio dessa degustação do café não calhou meteres mais nódoas na camisa, não? É que por vezes o café desperta-me de duas formas, pelo líquido e pelo escaldão quando entorno parte dele em cima de mim.

Abraço!

LBJ disse...

Rafeiro,

Bem vindo.

Já me aconteceu entornar sim senhor, mas por incrivel que te possa parecer nunca me sujei,já destruir documentos importantes não vou falar sobre o assunto :)

Abraço

Ana disse...

LOOL, eu tb não uso relógio...mas o digital do lélé ou as horas do portátil não enganam.

Não, não andei a rever os regressos ao futuro ahahahah. Na verdade, não acredito que seja possível viajar para o futuro, apenas para o passado. O futuro ainda não aconteceu, o passado já.

E, se pensarmos bem, vivemos no passado...porque, no momento em que percepcionamos algo e o nosso cérebro o identifica, já esse algo se esfumou nos micro-segundos que demorámos a percepcionar e compreender as coisas...perdemos o presente para o passado assim que o compreendemos...
E a luz que nos vem de estrelas que já não existem? estamos a olhar para o passado delas, não para o seu presente...

Quanto ao futuro...não existe, ainda. Ou melhor, não existe só um. Existem milhares deles, cada um dependente desta ou daquela decisão/acção/whatever. Porque, para toda a acção, há uma reacção. E já está determinado que reacção vamos ter perante certa acção, mesmo apesar de isso não ser determinável. Bem, então acho que me contradigo...afinal, o futuro existe e já está determinado. Só não é determinável. E está dependente de várias acções...

Livre arbitrio? quem disse?...somos reféns da nossa bioquímica, mais do que julgamos.

Ana disse...

Bem, acho que vou beber outro café... :D

Light Princess disse...

Eu adoro café, e misturado assim com "meia" loucura então deve saber a canela, que é um dos meus sabores de eleição e se puder salpico tudo com ela... (ponta de loucura? probably...)

Pois meu rapaz este teu diário está assim a modos que a meter-se-me na pele, será da escrita será dos sabores, será das imagens, será da loucura, será do que se vai desenhando na minha mente ávida à medida que vou correndo as linhas com os olhos?
Talvez seja tudo junto e misturado nas doses certas, não sei, alguma vez sabemos porque é que há coisas que nos tocam e outras que nos passam ao lado?

Well, continua.
Aposto que tens imensas palavras dentro de ti para partilhar.
Beijo

Fada disse...

Lol

Já me questionei sobre o facto, se eu trabalhasse numa lavandaria, se quereria saber de que eram as nódoas... A minha imaginação levar-me-ia por nódoas nunca dantes lavadas... :p

Quanto ao café... Não bebo. Faz-me mal ao estômago, é demasiado ácido. Gosto do cheiro e de gelado de café! :)

Gostei da "língua debaixo da mangueira de vapor" e das "papilas gustativas" emigrantes. Nunca tinha pensado nessa hipótese, de papilas emigrantes. Perfeitamente plausível... Não há pessoas que perdem o cheiro??? Os sensores também devem ter emigrado...

beijitos

Fada disse...

Recebi e li o 3. Obrigada. :)

Fiquei a ver as sombras no teu tecto e assumo que também faço o mesmo. Brinco às adivinhas com elas e com as nuvens. E com os reflexos em águas paradas. E em repuxos. E em mil e uma coisas, porque não temo as sombras, embora prefira a luz.

Obrigada pela partilha.
Boa sorte com a mulher do cabelo de sol... ;)

Beijitos :)