quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Diário de um louco impoluto - Dia 6


Respiro… Sei que existo porque respiro, não porque penso, o pensamento pode ser enganador e eu confio mais no respirar sempre que tenho dúvidas levo a mão ao rosto e sinto o ar que me sai das narinas e fico confortável. Eu quero muito continuar vivo, por mim vivia para sempre e sei que o digo agora porque o corpo ainda não envelheceu o suficiente e que se envelhece para que se tudo falhar pelo caminho um dia já não queremos continuar vivos, uma espécie de salvaguarda final mas gostava tanto de fazer tanto que por vezes me perco e na indecisão acabo por não fazer nada.

Alguém me estende um jornal e diz que é de graça, fico parado a olhar alguém que é uma rapariga que mastiga uma pastilha ou algo que tem dentro da boca e não sorri apenas me pressiona com os olhos a aceitar o que me estende, aceito porque sinto que é importante para ela que o aceite e assim que o faço vira-se e procura outros que como eu estejam dispostos a aceitar e fico a ver o seu corpo que não dança enquanto se move e penso que podia aproveitar e dançar enquanto distribui os jornais, eu teria gostado de a ver aproximar-se de mim a dançar e estender-me o jornal, nem precisava de dizer nada, nem sorrir, porque entendo que devemos guardar os sorrisos para quando é importante.

Eu não gosto de jornais e fico tentado a me afastar e deitá-lo no lixo sem que ninguém veja, porque me envergonha que me vejam como desrespeitoso e eu respeito quem imprimiu o jornal e quem o escreveu e a rapariga que não dança mas que o distribui a quem passa e por quem e pelo que nele é noticia. Eu não gosto de jornais mas gosto de ver as palavras semeadas por entre as imagens e folheio as páginas e desfoco a visão até não entender as letras e admirar os padrões que se reconstroem em quadros abstractos e imagino a vida e tudo o que está por diante e por detrás e à volta como um gigantesco museu onde basta desfocar os olhos para ver as peças de arte expostas.

Foco de novo na página das palavras cruzadas e sinto pena de quem as inventa, não consigo conceber nada mais complicado do que encaixar palavras em palavras e significados e lastimo o desperdício de mais uma mente brilhante e as contingências que a conduziram aquele trabalho e acalento-me dizendo que o faz pelo prazer do jogo e que é paga para fazer o que gosta e que eu sou pago por fazer o que tenho que fazer e que gostaria de fazer outra coisa mas não tenho coragem e reparo que o sinonimo de sentimento forte para com o próximo com quatro letras tanto pode ser amor como ódio e volto a perguntar-me porque estarei eu de novo a tentar encaixar justamente aquelas palavras.

Procuro a secção de necrologia e vejo quem morreu ontem e anteontem e na semana passada e há um ano atrás, quem resta informa quem não sabe e agradece a quem soube, normalmente não reconheço ninguém mas sempre lhes digo umas palavras baixinho porque acredito que quando se morre apenas se morre e não nos fica a pairar por aí uma alma ou um corpo incorpóreo a zelar pelo que se deixou e assim aquelas fotos são a ultima oportunidade de quem morreu de eu as conhecer e lá sussurro um muito prazer e tenho realmente muita pena de não termos tido a oportunidade de poder conviver e partilhar ideias mas a vida é mesmo assim e um dia morre-se.


Alesha Dixon-The Boy Does Nothing

22 comentários:

mf disse...

Estamos negros, hoje? Ou é simplesmente a falta de uma dança?

Francisco José Rito disse...

"Eu quero muito continuar vivo, por mim vivia para sempre e sei que o digo agora porque o corpo ainda não envelheceu o suficiente e que se envelhece para que se tudo falhar pelo caminho um dia já não queremos continuar vivos"

Profundo isto...com pano para mangas:-)
Um abraço

Gata2000 disse...

Eu devia ter cerca de 10 nos, estava no carro com os meus pais e tinha feito uma asneira qualquer da qual não me lembro, pelo que deve ter sido inofensiva. E enquanto a minha mãe disparava palavras que serviam certamente para me moralizar, eu pensava de onde vinha o significado de cada uma das palavras que lhe saíam pela boca, e como cada uma delas servia para formar uma frase.
E senti muita admiração por quem tinha inventado a palavra, especialmente por que inventou a palavra: palavra.
E para mim, só está morto quem não deixa memória!

Inconstante disse...

tu tens o privilégio de escrever disparatadamente bem, não apenas parágrafos ;-), e podes por vezes, eventualmente, não escrever de ti e teres a capacidade de escrever dos outros e expressá-lo muito melhor do que eles alguma vez o fariam...faço sentido?

beijos

Rafeiro Perfumado disse...

Para sempre é um período de tempo muito longo, ainda mais porque não podes desistir a meio.

Valquíria Vasconcelos disse...

O mundo é dos loucos... e os loucos somos nós!

forteifeio disse...

Adorei a ultima parte. É um tempo que podiamos ter conhecido outros por sermos contemporaneos mas que não aconteceu...

Só mais uma coisa amigo.

A inconstante disse algo importante.

Abraço Forte

Anónimo disse...

Espera estou confusa?!... isso tudo para dizeres que não gostas de jornais?! é isso?

Tens uma grande capacidade de descrever o que te rodeia, escreves muito bem.

Bjs

LBJ disse...

Hedgie,

Não não estamos nem cinzentos :)

Uma dança é bem vinda bora lá ;)

Beijo

Pronúncia disse...

Hum! Também te achei algo cinzento neste post!

ideias soltas:
- para sempre é demasiado tempo...
- os sorrisos não são só para as ocasiões importantes. Numa ocasião nada especial, banal mesmo... um sorriso pode fazer a diferença! E nem custa nada! Basta... sorrir!
- dança. Ai, a dança! O que eu gosto de dançar... nem imaginas!

LBJ disse...

Francisco,

É realmente um tema que me atrai este paradoxo que se pode pôr em forma de pergunta:

“Morremos porque temos que envelhecer ou envelhecemos porque temos que morrer?”

Um Abraço

LBJ disse...

Gata,

Já falei também sobre isso da importãncia da palavra palavra e olha que é bela não é?

Concordo em absoluto, a morte só é enganada pela memória e deste-me um bom tema para um destes dias :)

Beijo

LBJ disse...

Inconstante,

Fazes sentido ;)

Aproveito para dizer que estes textos não me retratam, nalgumas coisas uso a memória e a vivência pessoal mas eles vão procurar aos poucos montar uma história e depois como diz uma amiga, logo se vê :)

Beijos

LBJ disse...

Rafeiro,

Pois é tens razão, é uma chatice não se poder desistir não digo a meio mas neste caso quando achássemos que já tínhamos acabado a obra :)

Abraço

LBJ disse...

Valquiria,

Bem vinda,

Infelizmente cada vez menos o mundo é dos loucos ou pelo menos dos bons loucos :)

Beijo

LBJ disse...

Forte,

Pois é quantas pessoas há que perdemos a oportunidade de conhecer e isto da blogo ajuda um bocadinho, meu amigo quantas vezes não teriamos já passado um pelo outro sem nos falarmos?

Abraço Forte

LBJ disse...

Fátima,

Confesso que não gosto muito de jornais e cada vez mais deixaram de ser um meio de informação e passaram a ser um meio de chegar às pessoas, daí o fenómeno dos jornais gratuitos. Também não gosto do toque do papel e incomoda-me a tinta que alguns largam :)

Obrigado :)

Beijo

LBJ disse...

Pronúncia,

Não tou, não tou cinzento :)

Sim sorrir devia de ser mandatório nos dias pares e obrigatório nos dias impares e nos outros ao gosto de cada um :)

Para sempre pode não ser demasiado tempo se o soubermos passar bem :)

Repito o que disse à Hedgie, bora lá dançar :)

Beijo

mf disse...

GOT YOU!!!!! Com que então, 'logo se vê', hem? Eh eh. eu bem sabia que um dia te apanhava...

LBJ disse...

Hedgie,

Eu disse: como diria uma amiga minha que se me tiver a ouvir sabe que eu sei que sabe o que quero dizer :P

Beijos

Euza disse...

rs... jornais são nossos tormentos! Mas ficamos sem eles?
Interessante como vc, de forma que parece despretensiosa, entra em assuntos sérios e interessantes!
Beijo!

Fada disse...

"...a vida é mesmo assim e um dia morre-se."

Carpe Diem...

Beijo doce, com dança! :)