Volto à lavandaria, estou a precisar de uma camisa mais bem lavada e sem os vincos que se teimam em vincar naquelas com que luto no final de cada domingo. Vou pelo caminho a esquecer o cheiro como se pudesse esquecer um cheiro por antecipação, temos sentidos imperfeitos, gostava de os poder controlar, ver apenas as cores que me iludem, cheirar apenas os aromas que me excitam, ouvir apenas os ritmos que me movem, saborear apenas os gostos que me inebriam, sentir apenas a suavidade de uma pele no seu calor e o tremor no toque da carícia.
Hoje a empregada não está sozinha, está acompanhada de outra mulher mais jovem e sorri quando me vê como se me reconhecesse o que me surpreende porque consigo normalmente passar sem ser reconhecido e tira debaixo do balcão uma lata de um spray qualquer que espalha generosamente o que deixa no ar um cheiro a fruta madura ou flores esquisitas ou uma mistura agradável de ambas e pergunta-me se gosto mais assim e que dali o cliente nunca vai descontente. Rio-me com sinceridade e sei que o sabe porque quando me rio consigo transmitir um fio de alegria que me sai dos olhos e não sei porque não procuro mais razões para o fazer. Dou-lhe o recibo e vai lá dentro e vejo que comenta qualquer coisa em voz baixa com a outra mulher e regressa com a minha camisa suspensa num cabide tosco de arame torcido e envolta em plástico e diz-me que a nódoa saiu totalmente e que é uma camisa muito bonita e inclina-se sobre o balcão e indica-me que a imite e com os lábios quase a tocar-me nos ouvidos sussurra-me.
Sussurra-me que a deixei a pensar sobre as nódoas e que agora fica a imaginar a vida de cada cliente de acordo com as manchas nas roupas que lhe entregam e acha isso interessantíssimo e começou a ler livros sobre mistérios e psicologia e hábitos alimentares mediterrâneos e que de repente por uma coisinha de nada está mais feliz e me gostaria de conhecer melhor e que lhe perdoe o atrevimento, que não costuma ser assim impulsiva e nem sabe porque o está a fazer. Olho pela primeira vez para a mulher, olho-a pela primeira vez como mulher e noto-lhe os olhos e o rosto, sempre me fixo inicialmente nos olhos de quem olho e só depois procuro o rosto nos lábios, na forma como a pele se arredonda ou se esguia em torno do nariz e agora que a olho pela primeira vez como mulher vejo realmente a mulher e fico sem saber o que lhe dizer por que não esperava encontrar ali uma mulher, apenas alguém que não precisava apagar da memória porque nunca tinha lá estado e agora era tarde demais.
Estamos ainda ambos inclinados sobre o balcão, os seus lábios ainda suficientemente perto para lhe sentir o respirar calmo, os rostos ainda suficientemente afastados para não nos contagiarem os rubores e pergunto-lhe o que me poderia ensinar sobre os hábitos alimentares mediterrâneos e dá uma gargalhada enquanto se endireita e parece-me estranho não fazer o mesmo e vejo-a agora por inteiro e diz-me que conhece um pequeno restaurante que me poderia ensinar mais sobre esse assunto do que mil livros e que não é caro e suficientemente calmo para uma boa conversa e hoje já não podia mas amanhã teria mesmo muito prazer se eu quisesse e acabo por sorrir e dizer que amanhã não podia eu porque tinha que viajar e regressaria tarde mas no dia a seguir estava totalmente livre para um almoço ou jantar e prefere jantar porque teremos mais tempo e fica combinado o sitio e a hora a que a apanho e iremos no meu carro.
Saio entontecido pelo inesperado e surpreendido por não me ter enroscado nas minhas dúvidas, levo na mão e na ponta do dedo uma camisa lavada que já não irei vestir amanhã.
A minha amiga Hedgie que foi a minha primeira comentadora e a primeira a dizer que esta forma tonta de escrever lhe agradava, foi a minha visitante número 2222 e eu gosto de números e o que eles nos significam ou talvez não e por isso achei que merecia uma prenda sim senhora e aqui está esta musiquinha que lhe dedico porque sei que muito lutou para hoje poder também dizer de voz solta esta mensagem.
Luz Casal - No Me Importa Nada
21 comentários:
Nada como o inesperado, o acaso ou o destino (para quem acredita) para nos surpreender!
Bjs
As coisas mais estranhas podem mudar o curso da nossa vida, inclusivamente uma nódoa!
Gosto de histórias com finais felizes
:) Bom fim de semana
Este seu diário são belíssimas crônicas do cotidiano, moço!
Nesta, me encantei com os detalhes narrados dos dois rostos vizinhos. Perfeita a forma como coloca o leitor dentro do texto!
Beijocas
Água oxigenada???? num entendhu...
e encontro...corre bem? podemos saber o final? ele é casado? e ela?
vê se contas o resto da história...se não, eu colo aqui as minhas histórias e já não me surpreendo.
beijos
Primeiramente agradeço sua visita ao meu humilde cantinho...
De repente me deparo com tanta delicadeza e (in)confidências lindas neste seu diário cotidiano.
Amei tudo por aqui: de cabo a rabo...e votarei. Já estás entre os favoritos.
Obrigada Santa Internet!
Obrigado pela visita.
Virei aqui mais vezes e mandarei as minhas usuais "bocas". Espero não incomodar. Além do turismo, existem outros temas que posso falar com algum fascínio e conhecimento...
Menino Jesus, a tua amiga Hedgie tem bom gosto. Ia eu a meio deste retalho da tua vida e estava a pensar que te ia dizer exactamente isso no meu comentario de hoje. Que gosto dessa tua forma de escrever.
Vá, depois contas quantas nódoas fizeste na camisa lavada, enquanto tentavas enfiar o garfo na boca, a olhar nos olhos da vizinha :-)
Bom fim de semana
Fátima,
Vamos ver se continuo asurpreender com o inesperado :)
Beijo
Gata,
Esta história do final e vamos a ver se será feliz :)
Beijo e reitero os desejos de um Bom Fim-de-semana
Euza,
Obrigado, gosto de sentir que quem lê o faz como se estivesse a ver um filme o mesmo que vejo na cabeça e que tento descrever :)
Beijão
Billie,
Já está esclarecido :)
Beijos
Inconstante,
Esta história vai ser contada não sei se toda mas se não for será por uma boa causa :)
Beijo
Aline,
Bem vinda
Obrigado e volta sim que eu quero aprender mais vocabulário :)
Dylan,
Bem Vindo,
Aqui só uma pessoa não pode mandar bocas e é por isso que os comentários passaram a ser moderados agora ao fim de ano e meio de blog :)
Abraço
Francisco,
Obrigado e a Hedgie tem bom gosto sim na forma como vive a vida, mas não é por gostar da minha forma de escrever :)
A história irá ser contada.
Abraço e Bom Fim-De-Semana
Muito me ri com a música escolhida. Muito obrigada, amigo.
De facto, foi uma conquista saber "manejarme en las distancias cortas". Sabe bem conseguir ser eu. E é óbvio que tenho bom gosto (muito obrigada, Francisco!). :)
H.
PS - Tenho é a impressão de que quem ouvir a música duas vezes vai ficar a pensar que eu ando por aí a partir corações... Eh eh
Ouve lá, é a sério ou ficção?!
Está tão bem descrita que fiquei na dúvida.
Seja o que for, quero saber o resto... :)
Bom fim de semana
Bêjos (ihihih! Também adoptei estes últimos...)
Hedgie,
Sabia que esta canção te iria fazer rir e olha que é uma bela canção.
Tens bom gosto sim senhora :)
Não sei se andas a partir corações mas sei que não o farias por vontade própria :)
Já te agradeci o favor da tua amizade? :)
Um Beijo
Pronúncia,
Grande Mulher do norte, claro que é ficção então a menina acha que eu estava a ficar louco ;)
O meu caminho é na direcção da sanidade, espero que com doses de loucura suficientemente saudáveis :)
O resto da história irá sendo contada :)
Bêjos e bom Fim-de-Semana
ADOREI!!!!!!!!!!!!!!
:D
Deixaste-me com um sorriso rasgado pelo inesperado, pelo mistério, pela antecipação!
Adorei, adorei , adorei!!! :D
E agora, penso no que não comentei no post anterior, sobre os sorrisos...
"porque entendo que devemos guardar os sorrisos para quando é importante."
Eu sorrio facilmente... Com os lábios, mas mais ainda com os olhos...
E...
Ou serei fútil...
Ou é sempre importante... :)
Beijitos, meu querido louco... :)
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