domingo, 23 de agosto de 2009

Diário de um louco impoluto - Dia 8



Gosto de fazer longas viagens sozinho. Gosto do tempo que me sobra nesse tempo para pensar sem a interferência do ruído dos pensamentos dos outros e mecanizo a condução do carro, numa velocidade constante e tento construir a estrada só para mim, afasto-me de quem me precede e ignoro quem me persegue, nunca dou pelo que demoro, parto no instante em que me desligo do mundo e mergulho em mim e chego quando o caminho acaba. Gosto de fazer viagens e passar esse tempo comigo numa oportunidade rara de comunhão e escolho por companhia ou banda sonora um qualquer posto de rádio com poucas palavras e surpresas em cada música que possa assobiar ou cantar em voz alta as palavras que conheço ou como as percebo.

Hoje fui e vim e entre ir e vir fui profissional e nada mais. O importante e relevante foi o ir e o vir e tudo o resto se passou em cenários montados e orquestrados dentro da minha cabeça e arrumei coisas velhas, desisti de alguns farrapos de ideias ou agora sem sentido ou agora sem vontade ou agora sem possibilidade ou agora sem coragem e marquei objectivos e resoluções e imaginei o dia de amanhã como um dia feliz e isso fez-me cantar em voz mais alta a canção que tocava e que estranhamente não recordo. Mantenho-me firme em me deixar seguir pelo caminho que me conduz, não mais resistir à corrente que me leva a entender tudo como o entendo e dizer o que sinto que devo no momento e na sua forma crua, sem coberturas brilhantes ou apetitosas que escondam banalidades.

Gostava de largar tudo e escolher outra coisa, seria bom se a vida fosse um menu em que se prova uns gramas de todos os pratos e ainda uns gramas dos que nos agradaram mais para tirar todas as dúvidas e por fim escolher sem receios de decepção ou indigestão. Gostava de ser personagem da minha própria história e poder contá-la com as palavras que me apetecesse, com palavras que se transformassem em realidades de apoteose ou na simplicidade de um beijo dado numa chegada ou numa partida, jamais esquecido e que sempre retorna aos lábios nos momentos de pior dúvida. Gostava de ser pedra na minha arquitectura, actor principal na minha encenação mas sou e ainda apenas eu e nada consigo vislumbrar do dia depois de amanhã.

Paro para meter gasolina numa bomba de auto-estrada. É um local por onde se passa sem passar, onde se para sem pudor de voltar a partir e interrompo os meus pensamentos porque o carro me pede combustível e o cansaço me pede um café e a fome qualquer coisa que a sacie e opto por algo mais doce e vejo no olhar de quem me serve o desalento de alguém que vê os outros chegarem para logo partirem, hospedeira de viajantes ancorada na viagem e tenho um impulso de lhe perguntar se não gostaria também de partir mas não o faço porque me iria sentir cruel em questionar possibilidades a quem não tem opções e apenas sorrio e forço com isso o retorno de um esgar na face, sem desprezo mas com desconsolo.

Chego como normalmente sem vontade de me sentir e faço por ignorar tudo o resto em troca de um bom banho. Deixo a água correr sobre a pele e lavar a distância que percorri, porque fui e voltei sem mais significado e relembro em velocidade acelerada tudo o que pensei e pergunto-me se não deveria escrever algumas coisas para não as esquecer mas sei que não o farei, há muito que deixei de escrever para mim, há muito que deixei de escrever para os outros, há muito que me ancorei nesta parte da viagem e desisti desse destino.


Henry Mancini-Pink Panther Theme

27 comentários:

Ginger disse...

Este texto deixou-me um bocadinhos triste... don't know why.



kiss*

Fada disse...

:)
Afinal não somos assim tão parecidos!
Nas viagens longas, procuro companhia (ao telemóvel), pois perder-me em pensamentos e viagens interiores leva-me a uma distracção tal que poderia ser perigosa...

Ao contrário de muitos, conduzir e falar ao telemóvel é o que me prende à realidade da condução e da viagem...

E hoje, também tenho uma para fazer. :)
Uma viagem de regresso à infância. :)

Gostei da vida ser um menu, hoje o que quero são amoras silvestres e beijos de meninos e alegria da família, latidos de cachorros e carinho do meu cão, perfume das rosas da minha mãe e sabor da comida dela.
Hoje, peço o menu "infantil". :D

E quando passar nas estações de serviço, vou-me lembrar deste teu diário, e do facto de não parar, porque nem o carro precisa de gasóleo, nem eu bebo café... ;)

Um beijo grande, grande, grande, domingueiro e alegre, cheio de sol! :)

Anónimo disse...

A música da pantera cor-de-rosa fez-me voltar à minha infância. Ah, como é bom ser criança! quando era criança queria crescer, agora que sou adulta quero voltar a ser criança! nunca sabemos ao certo o que realmente queremos.

Quanto ao post, excelente escrita! gostaria de ter essa qualidade de descrever os detalhes que circulam ao meu redor.

Bjs

Pronúncia disse...

Bem, na questão das viagens, sou como tu. Aproveito muito as alturas em que conduzo sem companhia para falar comigo mesma e pensar na vidinha...

A quem é que nunca deu vontade de largar tudo e fazer-se à estrada?! A mim já!
Mas há coisas que não consigo largar e que me mantém ancorada à vida que tenho (e gosto)... :)

Gata2000 disse...

Como eu gostava de largar tudo e escolher outra coisa, e ser personagem principal na minha história.

Escrever a historia da minha vida com as minhas palavras e com um guião escolhido por mim.

As minhas viagens também são melhores quando as faço sozinha, presa aos meus pensamentos, numa tentativa (quase sempre vã) de os organizar.

Valqu´ disse...

As viagens de carro levam-me muitas vezes para a loucura... a loucura de pensamentos do que pode/tem que acontecer um dia.

E choro... choro muitas vezes a conduzir... ando algumas sem destino...

Besos

Valquíria Vasconcelos disse...

o comentário anterior é meu!

Inconstante disse...

"...seria bom se a vida fosse um menu em que se prova uns gramas de todos os pratos e ainda uns gramas dos que nos agradaram mais para tirar todas as dúvidas e por fim escolher sem receios de decepção ou indigestão..." - quando te é dada a oportunidade de provar de tudo um pouco, quando acabas já não tens fome...e só no dia seguinte lamentas o facto de não teres aproveitado os pratos mais deliciosos...that's human nature

Dylan disse...

Bela descirição textual.
De facto, também adoro viajar sozinho, de carro ou fazendo grandes caminhadas. A banda sonora? Basta um chilrear de pássaros.
Tenho grandes recordações de viagens solitárias descendo o Marão, com nevoeiro, chuva e escuridão quase total. Ou então, viagens apressadas na Serra da Freita para chegar a casa depois de uma comunhão memorável com a natureza. Sim, porque apesar das viagens, sentimos uma atracção irresistivel para voltarmos ao sítio de partida.
Já me perdi várias vezes, no tempo e no espaço. Olha, numa ilha galega, Arousa, território de grande paixões e beleza.

Aparece também aqui:
http://dylans.blogs.sapo.pt/

Abraço.

Pax disse...

Gostei muito do texto.
Identifiquei-me em muitas coisas...
Tantas vezes dou por mim própria a percorrer estradas tão absorta e concentrada em me livrar de farrapos e arrumar coisas velhas que acabo por chegar ao destino e nem me aperceber que já percorri tantos Kms!
Por vezes consigo arrumar muitas coisas... por vezes ficam para uma próxima viagem :)

Francisco José Rito disse...

Este texto merecia uma folha inteira de comentários...gostei
Nas minhas viagens tento nao pensar. Ocupo a mente com as coisas que vejo, sem tomar notas de nada, mas por incrivel que possa parecer, anos mais tarde relato a viagem e as coisas que me marcaram, como se tivesse acabado de estacionar.

um abraço

forteifeio disse...

Onde é que anda o menino Jesus???

LBJ disse...

Ginger,

Não te queria deixar triste mas seria interessante saberes porque te deixou triste, sabermos porque estamos tristes é a melhor forma de resolver as causas da tristeza:)

Kisses

LBJ disse...

Fada,

Somos somos eu quando quero fugir aos meus pensamentos faço exactamente o mesmo :)

Happy meal especial de Health food só para ti com brinquedo e tudo :)

Esta resposta vem tarde mas espero que tenhas gostado do teu regresso à infância :)

Um Beijo

LBJ disse...

Fátima,

Pois e quando tiveres 30 queres voltar a ter 20 e quando tiveres 40 vais querer ter 30 e por isso o melhor é viver a vida em pleno pensando sempre que o melhor ainda está para vir :)

Beijos

LBJ disse...

Pronúncia,


E a cantarolar ;)

Sempre me pareceste uma Mulher com âncoras felizes :)


Beijos

LBJ disse...

Gata,

Vais ver que será heroina de um final feliz :)

Beijo

LBJ disse...

Valquiria,

Mulher multifacetada é difícil acompanhar o ritmo com te mudas :)

Chora a conduzir não é bom, pára num sitio bonito e vais ver que as lágrimas te secam com a paisagem :)

Beijos

LBJ disse...

Inconstante,

A vantagem da vida é que nos dá muito tempo para ter fome mas não deixas de ter razão :)

Um Beijo

LBJ disse...

Dylan,

Sei que viajas sim e do prazer que tiras das viagens.

Estou lá agora a ouvir os Soft Cell e a viajar no tempo;)

Abraço

LBJ disse...

Pax,

Bem vinda.

Obrigado :)

Convém termos sempre um bom motivo para viajar.

Beijo

LBJ disse...

Francisco,

O que nos marca fica e é realmente impressionante a nitidez de alguns detalhes que nos ficam.

Abraço

LBJ disse...

Forte,

Andei por aí mas agora já estou aqui :)

Forte Abraço

Light Princess disse...

Parece que as férias me afastaram de muitos dos teus episódios diários de loucura... vou tentar retomar o passo a partir de agora...

Beijo

Pax disse...

"Bem vinda"

Gostei muito de ter vindo :)

"Convém termos sempre um bom motivo para viajar"

Que mais não seja não termos o que queremos a uma walking distance... :)

LBJ disse...

Luz,

Espero que o interregno e o retorno tenham sido bons.

Também eu estou a tentar recuperar a leitura de todos os blogs que visito mas não tem sido fácil, vamos ver se me é possivel normalizar as leituras até ao final da semana :)

Beijos

LBJ disse...

Pax

:)

Mesmo quando caminhamos podemos viajar, eu "viajo" e às vezes por pouco evito os postes :)