E corri a língua e senti…Senti-a nos lábios mas não o seu cheiro, nenhum odor de mulher, apenas o característico cheiro a pó dum buraco de homem desleixado ou convencido de outras prioridades mais importantes que a limpeza da casa. Fiz a busca habitual às gavetas e às coisas que imaginava valiosas, nada tinha desaparecido, tudo estava intacto, ela entrou na minha casa fodeu-me, marcou-me e deixou-me e deixou-me um bilhete que tinha que ter significado e deixou-me uma embalagem de preservativo caída no chão, apenas uma, tanto desejo tanto tesão e só a fodi uma vez…
Guardei a embalagem como se fosse uma coisa importante, sem sequer olhar para ela, guardei-a na carteira e fui tomar banho, estava viscoso de suor mas apenas reconhecia o meu cheiro e isso incomodava-me e eu sou um homem de incómodos, tenho o incomodo como motor da vontade e enquanto a agua corria, quente, mais do que o corpo aprecia ouvi o telefone tocar e procurei imaginar quem seria sem querer sair da sensação de escaldo que sentia sobre as costas e depois deixou de tocar ou eu de o ouvir e fechei os meus olhos e voltei a ver os seus olhos por debaixo das pestanas e entre sobrancelhas, olhos castanhos escuros e brilhantes e senti o caralho mexer-se com vontade própria e ignorei-o, não podia, não queria fazer nada por ele que me tinha traído, apenas a tinha fodido uma vez, uma noite longa com a mulher mais inebriante que alguma vez tinha conhecido e apenas a tinha fodido uma vez.
Sai do chuveiro, sequei o corpo ainda em busca do seu cheiro e vesti uma camisa lavada, umas calças coçadas ainda não suficientemente imundas e calcei uma meias que voltei a descalçar quando o dedo grande do pé ficou de fora num buraco, procurei outras na gaveta e acertei à terceira. O telefone indicava que tinha uma mensagem, encostei-o ao ouvido e liguei para a caixa de mensagens e ouvi. Era uma proposta de trabalho, um biscate para investigar uns boatos sobre uma figura publica que segundo o que parecia andava a mijar fora do penico e a mulher não sabia ou não queria saber mas a imprensa fazia questão que soubesse. O meu ganha pão, descobrir segredos suficiente sórdidos para que me pagassem para os contar ou imensamente sórdidos para que me pagassem para não os contar, sempre me tinha sentido mais ético aceitar a segunda hipótese.
Recordei o que me levara à falésia na véspera, violara o mais elementar dos princípios, deixara-me envolver demais por um caso, aceitei que me pagassem o silencio em género e no final acabei sem nada, nada para vender e nada para capitalizar, sem mulher nem dinheiro nem propriedade, o predador encurralado pela presa.
Ela uma actriz em alta, primeira figura em novelas de televisão, menina bonita do publico, capa de revista com estatuto de quase santa, virgem sem macua mas com um esqueleto de dinossauro dentro do armário dos sapatos que eram muitos. Não foi fácil, mas tinha conseguido desenterrar que ainda com dezasseis anos tinha engravidado e tido uma criança sem ninguém saber, nem mesmo os pais, coisa impressionante como é que uns pais se conseguem alhear tanto de uma filha que durante nove meses nada percebem e ainda a censuravam que estava gorda, que isso não a ia ajudar a ser famosa. No fim com a ajuda de uma amiga pariu e deixou a criança à porta de uma igreja, porque é que se deixam crianças à porta das igrejas sempre me fez confusão, nunca me pareceu que os padres tivessem dotes particulares de puericultura, resta Deus como motivo, mas eu com Deus tenho uma relação particular de desconfiança e um pacto de não agressão, eu não o chamo em vão e ele faz por me ignorar no resto do tempo, até agora tinha resultado.
A criança foi adoptada e levada para o estrangeiro por um casal abastado, outro negocio meio estranho mas que não me interessou particularmente, terreno demasiado pantanoso onde corria o risco de me atolar em merda, quando a confrontei com a situação nada fez por negar, apenas me pediu para saber mais, disse que não tinha medo do escândalo, queria saber da filha e eu coração mole fui na conversa e quando dei por mim estava deitado com ela na mesma cama a lamber-lhe os seios e a contar-lhe tudo, todos os pormenores a prometer ajudá-la a reaver a filha, num repente tudo desapareceu, criança, pais adoptivos, todas as pistas limpas como a sua imagem, uma amostra condigna do poder do dinheiro e eu com uma ameaça séria de que se a voltasse a incomodar acabaria com os colhões na boca e apenas com o ar que respirava a prazo e como das outras vezes fui ver o mar e a atracção do salto que nunca daria, por ser demasiado covarde.
Reparei de repente que não tinha feito a barba, mas não me apeteceu, enfiei duas fatias de pão bolorento na torradeira, o milagre que o calor intenso faz ao bolor à muito que me tinha convencido a ignorá-lo, era a minha contribuição como elemento reciclador de lixo. Barrei abundantemente manteiga e abri uma lata de cerveja o que me pareceu adequado para aquela hora de manhã onde qualquer coisa mais forte me podia enevoar o raciocínio. O raspar do pão nos lábios fez-me arder a ferida e trouxe-me de novo à memoria a mulher da noite anterior e do acaso do encontro, ou talvez não, a sorte não costuma dormir comigo e aquela mulher seria na tabela de qualquer homem um sinal de sorte, mas eu sou desconfiado, ainda não tinha decidido se voltaria à falésia hoje à noite, mas sabia no meu intimo que essa escolha não era minha, que quando desse por mim estaria lá parado à espera do que sabia não ia acontecer, mas tinha que esgotar essa possibilidade, de voltar a rever aqueles olhos e voltar a sentir aquele cheiro que não conseguia recordar. Voltei a ouvir a mensagem. A vitima era um politico em ascensão, um paladino com futuro, material ministeriável, casado pai de dois filhos pelos vistos com um caso com um secretario, pelo menos desta vez não ia acabar na cama com ninguém ou pelo menos assim o desejava.
Sai para a rua e o sol incomodou-me os olhos e eu sou um homem de incómodos é o meu motor de vontade, pus os óculos escuros, acendi o cigarro e parti à procura de um cheiro perdido na manhã.
Beck-Looser
11 comentários:
O cheiro é das coisas mais importantes na minha vida. Tenho uma memória olfactiva demasiado grande, demasiado exigente (está sempre a pedir-me novos cheiros). Não consigo conceber um mundo sem cheiros e fico doente (ok, mais doente) quando estou constipada e não consigo sentir cheiros.
Cheiros que me enebriam:
terra molhada, relva acabada de cortar, cão que saiu do banho, oregãos, livros, cabelo suado de criança, cama feita de lavado, gasolina a sair da bomba, éter, cerejas, pele da base do pescoço, couro, pato assado no forno, castanhas, bagas dos salgueiros-chorões, papel queimado, mar, mar e mar!
O meu mundo sem cheiros seria insuportável. Estéril. Desolador.
Fizeste-nos a vontade... e escreves-te o 2º capítulo.
Venha o 3º! ;)
Espero que tenhas encontrado o tal cheiro...
Hummmmm...sinto que andas fugido, escorregadio, deslizante...que passa hombre!?
Fellings
;)
CREDUUUUUUUUUUUUUUUUUU!
Detesto o cheiro da relva acabada de cortar...incrivelmente, apenas me lembra aquelas coisitas castanhas com que os canitos costumam semear a dita...a memória olfactiva é tramada, não é?
Storyteller,
Sim o cheiro é muito importante.
Eu tenho pouco olfacto, alguns dos cheiros que te inebriam nem os sinto :)
Pronúncia,
Vai demorar um bocadinho mas o 3º está a desenhar-se na cabeça :)
Beijo
Ana,
Os cheiros encontram-se, depois é preciso fixá-los até fazerem parte de nós.
Não ando fugidio, nem sempre o tempo e a disposição me trazem para este lado :)
Vani,
Por acaso o cheio de relva agrada-me, nunca tinha imaginado isso dos canitos, mas tens razão :)
Preciso do 3º!!!
:D
ESCREVEEEEEEEE!!!!!! :D
Beijitos :)
Ah, adorei os pormenores de meias e pão bolorento e do "tanta tesão e só a fodi uma vez"... :D
Kisses
Fada,
Vou escrever :)
Os pormenores são o que me dão mais prazer, o sal e pimenta da narrativa :)
Beijo
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